Título: Uma grande vitória
Autor: Piovesan, Flávia
Fonte: O Globo, 23/02/2012, Opinião, p. 7

Após intensos debates que se alongaram por quase 2 anos e 11 sessões de julgamento, o Supremo considerou constitucional a Lei da Ficha Limpa, que torna inelegíveis por 8 anos políticos cassados, condenados por órgão colegiado por corrupção, abuso de poder, improbidade ou que renunciaram aos mandatos para evitar uma punição. Fruto de iniciativa popular, a regra já incidirá nas eleições deste ano.

Três são os maiores avanços decorrentes do julgamento do Supremo. O primeiro deles é o reforço do valor constitucional da moralidade administrativa - essencial à construção democrática. Ao tratar dos direitos políticos, a Constituição enuncia que a lei poderá estabelecer outros casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. É neste cenário que se insere o clamor popular em defesa da Lei da Ficha Limpa. Como lembrou o Supremo, a inelegibilidade não é uma pena, mas é um instrumento para subordinar o político à moralidade, à probidade, à honestidade e à boa-fé.

O segundo avanço é a imposição de limites éticos e jurídicos àqueles que abusam do poder, maculando o estado de direito. Já advertia Montesquieu a máxima de que "todo aquele que tem o poder tende a abusar dele (...). O poder vai até onde encontra limites. Só o poder controla o poder". O controle popular, exercido pela iniciativa popular (mediante a apresentação do projeto de lei subscrito por mais de 1,3 milhão de eleitores), foi endossado pelo controle jurisdicional exercido pelo Supremo, na afirmação de limites àqueles que corrompem, desvirtuando o princípio republicano. Prevaleceu o contrapoder deflagrado pela democracia participativa e juridicamente legitimado pelo Supremo, que lhe conferiu validade constitucional.

O terceiro avanço é a extraordinária contribuição da Lei da Ficha Limpa para o fortalecimento da democracia, do estado de direito e da chamada "accountability" (exigência de responsabilização e de prestação de contas dos agentes públicos). No Brasil ainda há o desafio da consolidação do estado de direito em sua vocação mais genuína de que a lei vale para todos, alcançando tanto os mais vulneráveis como os mais poderosos. Na pedagógica lição republicana, ninguém pode estar acima da lei. Apenas em 2010 é que o Supremo, ineditamente, decretou a prisão de um deputado federal pela prática de crime - passados mais de 20 anos da adoção da Constituição.

Cabe menção, ainda, ao legado dos institutos da imunidade processual dos parlamentares (que permite à Casa legislativa sustar, a qualquer tempo, o andamento da ação penal contra deputado ou senador); do voto secreto nas sessões de cassação de parlamentar (que viola o princípio da transparência e do controle popular, já que a democracia é o governo do poder visível, cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle da opinião pública); e do foro privilegiado (que viola o princípio da igualdade de todos perante a lei, ao determinar que deputados e senadores sejam julgados originariamente pelo Supremo).

Estes institutos são anacrônicos e incompatíveis com o estado democrático. Se, em sua origem, fundamentavam-se na ideia de preservação da independência do Legislativo - livrando-o do arbítrio, das ameaças e das pressões comprometedoras de sua atuação - na ordem contemporânea estes motivos não mais subsistem. De supostas prerrogativas institucionais do passado, estes institutos convertem-se hoje em verdadeiros privilégios pessoais, contribuindo para a impunidade, com a descrença nas instituições públicas.

O amadurecimento democrático requer transparência, publicidade, moralidade, probidade, honestidade, responsabilização e controle público, especialmente dos detentores de mandato popular. O Brasil ainda ostenta a constrangedora 73 posição no ranking sobre a corrupção elaborado pela Transparência Internacional em 2011, que mede a percepção da corrupção em 183 países - bem distanciado dos vizinhos Chile (22 lugar) e Uruguai (25 lugar). Neste contexto, a Lei da Ficha Limpa surge como um imperativo do estado democrático, simbolizando uma merecida vitória da cidadania brasileira.

FLÁVIA PIOVESAN é professora PUC- São Paulo e procuradora do Estado de São Paulo.