Título: O custo da negligência
Autor: Ferraz, Taís
Fonte: O Globo, 03/03/2012, Opinião, p. 7
O Brasil é o primeiro país no mundo em número absoluto de mortes violentas. Temos aqui 25 homicídios para cada 100 mil habitantes, quando a média mundial é inferior a 10 por 100 mil. Em algumas capitais caracteriza-se verdadeiro cenário de guerra civil, 40 mortes por 100 mil. E, na maior parte das vezes, as investigações não elucidam o crime.
Os dados são chocantes, mas a situação não é nova. A verdade é que nossa capacidade de indignação está adormecida. Ouvimos a notícia sobre um assassinato com a mesma resignação que reservamos para as notícias sobre o tempo. E esse comportamento alcança os gestores públicos e os atores do sistema de justiça e segurança pública.
Como consequência, um impasse que é de toda a sociedade e do Estado vem sendo tratado numa constante atribuição recíproca de culpas, sob a premissa de que "o problema não é meu" porque "faço a minha parte". Fazer cada um a sua parte, neste contexto, é insuficiente. As ações se impactam reciprocamente, são interdependentes.
Partindo do pressuposto de que a criminalidade é problema de todos e de que é necessário substituir o discurso da culpa pelo da corresponsabilidade, os Conselhos Nacionais do Ministério Público e de Justiça e o Ministério da Justiça constituíram a Enasp - Estratégia Nacional de Segurança Pública - para desenvolver medidas concretas e integradas entre os órgãos do sistema de justiça e segurança buscando reduzir a criminalidade e a impunidade.
Uma das metas da Enasp é concluir todas as investigações por homicídio instauradas até dezembro de 2007. Com prazo de execução fixado em 30 de abril de 2012, essa meta possibilitou uma mobilização nunca antes vista, para identificar inquéritos antigos, realizar diligências e concluir investigações. Movimenta 142 mil inquéritos que estavam paralisados nas delegacias por inúmeros fatores. É responsável, até agora, por concluir 20% desses inquéritos, dando resposta às famílias das vítimas e à sociedade em mais de 28 mil investigações. São 4.650 denúncias oferecidas, pelas quais estão sendo processadas pessoas que viviam na convicção da impunidade, sem imaginar responder por tão grave crime.
Graças à Enasp, sabemos hoje não apenas quantos homicídios ocorrem no Brasil, mas também quantos não são investigados e por qual motivo. Um diagnóstico realizado nos estados aponta a necessidade urgente de estruturação das polícias civis. É preciso romper, mediante investimentos de peso, com a histórica negligência dos governos para com a sua polícia investigativa. Há carência de delegados, de investigadores e de peritos. Em alguns estados, o efetivo da polícia não aumenta há mais de dez anos. Faltam equipamentos para a investigação, desde simples reagentes químicos até computadores e acesso à internet.
O primeiro passo para reverter o quadro está na tomada de consciência quanto à magnitude do problema. A roda movimentou-se, resultado da percepção, já tardia, de que a impunidade é causa direta do aumento da criminalidade e de que, no Brasil, matar é ainda um crime que compensa.
TAÍS FERRAZ é juíza federal e integrante do Conselho Nacional do Ministério Público.