Título: Comandante das eleições luta pelas liberdades
Autor: Brígido, Carolina
Fonte: O Globo, 11/03/2012, O País, p. 14

Criada no isolamento e na disciplina do internato, ministra diz saber "o que é não ser livre" e defende as minorias

CÁRMEN LÚCIA, presidente eleita do TSE

BRASÍLIA. Todos os dias, às 5h30m, o sininho tocava. Ainda não tinha amanhecido quando a fila de moças do Sacré Coeur de Marie, tradicional internato de Belo Horizonte, aguardava para usar o chuveiro. Cármen Lúcia tinha dez anos de idade. Seus pais moravam em Espinosa, a 690 quilômetros dali. Viam-se apenas nas férias. Era o único jeito de ter acesso a um ensino de qualidade. Hoje ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) e prestes a entrar para a História como a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Cármen Lúcia ainda acorda às 5h30, mas ao som do despertador. É nessa hora que elabora seus votos.

Embora seja grata aos pais por terem lhe proporcionado estudos, a ministra conta que os anos de isolamento e disciplina rigorosa foram sofridos. Hoje, sabe dar o devido valor à liberdade, um conceito que preza nas decisões judiciais. No ano passado, votou pelo direito de casais homossexuais registrarem a união civil em cartório e pela liberdade de manifestação a favor do uso de drogas em passeatas.

- Por isso eu batalho tanto pela liberdade, porque sei o que é não ser livre - diz.

A partir de abril, Cármen estará empenhada em comandar as eleições municipais de outubro, em que os brasileiros escolherão prefeitos e vereadores. Isso sem abdicar de sua cadeira no STF, onde serão julgadas questões decisivas para a vida nacional - como o processo do mensalão, a possibilidade de uma mulher abortar quando seu feto não tem cérebro e as demarcações de terras indígenas e quilombolas.

- Ser juíza não é uma profissão fácil. Você fica atormentada para fazer o que é certo do ponto de vista jurídico e da justiça. Se o fardo é difícil, pelo menos faço de maneira absolutamente honesta. Na hora em que eu for embora, quero que saibam que fui honesta sempre. E estou tentando acertar, espero que tenham piedade com a gente nesse sentido - afirma.

No STF, a ministra também costuma defender os direitos humanos e as minorias. Tem como constantes companheiros de voto os ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Celso de Mello. Em direito penal, é rigorosa: costuma votar pela abertura de ação penal,mesmo que não haja indícios fortes de participação do acusado. Defende que o processo seja instaurado para garantir o esclarecimento dos fatos. No plenário, os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli são de corrente oposta neste quesito.

Em fevereiro, o STF abriu ação penal contra o senador João Ribeiro (PR-TO) por manter em sua fazenda 35 trabalhadores em condições análogas à de escravo. Foram narradas condições precárias de higiene e saúde. Cármen sensibilizou-se e votou pela abertura do processo, junto com seis colegas.

Também em fevereiro, votou a favor da validade da Lei da Ficha Limpa para as eleições deste ano. A norma impede a candidatura de condenados por um colegiado.

- O ser humano se apresenta inteiro quando ele se propõe a ser o representante dos cidadãos, pelo que a vida pregressa compõe a persona que se oferece ao eleitor, e o seu conhecimento há de ser de interesse público, para se chegar à conclusão quanto à sua aptidão que a Constituição Federal diz, moral e proba, para representar quem quer que seja - disse no julgamento.

No início de março, Cármen votou, com a maioria de seus colegas do TSE, para que políticos com contas de campanha de anos anteriores reprovadas pela Justiça Eleitoral sejam impedidos de se candidatar.

- A tentativa é de, cada vez mais, fazer com que os princípios éticos da Constituição sejam respeitados. Nosso dever é o de respeitar a Constituição - diz.

Cármen é solteira e não tem filhos. Aos 55 anos, mantém uma rotina "monástica", segundo definição da própria. Escreve votos pela manhã, toma o café, vai para o STF, recebe advogados e partes em processos eparticipa das sessões de julgamentos à tarde. À noite, vai à sessão do TSE. Também trabalha aos sábados e domingos. Não encontra tempo para fazer exercícios físicos.

Nos fins de semana, abre brechas na agenda para ver os amigos. Gosta de recebê-los em casa, um amplo apartamento funcional, decorado com simplicidade, na Asa Sul de Brasília. Lá, conversam sobre livros e música, duas de suas paixões. A cada dois meses vai a Belo Horizonte, onde mantém um apartamento. Aproveita para ver a família e ir ao cinema, outra paixão.

A ministra se este com simplicidade, usa maquiagem discreta e deixa os fios brancos dos cabelos à mostra. É mineira típica, daquelas que não recusam pão de queijo com dois dedos de prosa. Gosta de contar "causos". Há dias, contou no plenário que tomou um táxi e que o motorista, indignado, disse que , hoje em dia, já deixam até mulher ser ministra do STF . Não sabia que transportava uma delas.

Também no plenário, quando o STF julgava a validade da Lei Maria da Penha mesmo quando a denúncia não for feita pela vítima, Cármen fez um discurso contra a discriminação de gênero. E disse sofrer na pele o preconceito.

- Ainda que titularizando um cargo que nos dá o direito a um carro oficial, vemos no olhar daquele que passa que estamos usurpando a posição de um homem. Imagina-se a esposa de alguém que deve estar trabalhando, enquanto ela está fazendo compras. Às vezes acham que juíza desse tribunal não sofre preconceito. Mentira, sofre! Há os que acham que isso aqui não é lugar de mulher, como uma vez me disse uma determinada pessoa sem saber que eu era uma dessas. A mulher foi e continua sendo grandemente sinônimo de sofrimento, de dor - afirma a ministra.

Depois do Sacré Coeur, Cármen formou-se na Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Era 1977. Concluiu o mestrado em Direito Constitucional na Universidade Federal em 1982. Foi advogada, procuradora do Estado de Minas Gerais e professora da mesma instituição onde se graduou. Tomou posse no STF em junho de 2006, nomeada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde novembro do ano passado, é ministra do TSE .