Título: Um mutirão a favor dos contas-sujas
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Fonte: O Globo, 16/03/2012, Opinião, p. 6

O Poder Judiciário tem um tempo próprio de amadurecimento de interpretações de conceitos legais. É em debates nos plenos das Cortes, às vezes alimentados por pressões legítimas de grupos sociais organizados, que doutrinas são esculpidas até, em algum momento, formarem jurisprudências. Está em curso no Brasil um rico processo de edificação de barreiras de proteção da vida pública contra a infiltração na política de corruptos e criminosos das mais diversas castas. Tem sido uma evolução passo a passo.

Ainda no início da década passada, tribunais eleitorais em certos estados, o Rio de Janeiro entre eles, começaram a aplicar o dispositivo constitucional da exigência da "probidade" para aceitar o pedido de registro de candidaturas. A tendência se alastrou, mas todas as decisões acabaram derrubadas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde foi reafirmado o princípio, também da Constituição, segundo o qual o cidadão só é considerado culpado após o julgamento do processo acusatório em última instância.

A moralização da política se tornava um objetivo inatingível. Políticos "fichas sujas" costumam se assessorar de advogados competentes, capazes de prolongar à eternidade o julgamento em instância final da clientela. Mas ganhou consistência o movimento pela ética na política e, numa mobilização histórica de eleitores, o projeto de origem popular da Lei da Ficha Limpa terminou aprovado, e venceu há pouco o último obstáculo ao receber o selo de constitucionalidade do STF.

Como a Ficha Limpa é mais do que uma lei, pode até ser entendida como sinal de um novo paradigma, o TSE, coerente com o espírito da nova legislação, baixou norma pela qual apenas terão registro candidatos com a conta de gastos eleitorais feitos em 2010 aprovada. Outro filtro imprescindível para sanear a política, pois projeta luz nas finanças das eleições, terreno pantanoso e obscuro.

Se vingar a resolução aprovada pelo tribunal, acaba, em grande medida, a leniência com que a Justiça eleitoral sempre tratou as prestações de contas. O simples comprovante de que o político encaminhou os devidos relatórios à Justiça servia de passaporte para a eleição seguinte. O novo entendimento do TSE é tão correto que conseguiu atrair críticas de todos os partidos. Situação e oposição - liderados pelo PT - se uniram para pedir à Justiça que recue no enquadramento dos "contas-sujas".

O TSE tinha sessão marcada para ontem, mas o tema não constava da pauta. Se, por hipótese, o tribunal recuar por inteiro, será um equívoco, um choque de frente com o espírito da Lei da Ficha Limpa. Os números são robustos: apenas no Rio de Janeiro, dos 2.527 candidatos inscritos nas eleições de 2010, 949 tiveram as contas rejeitadas e 541 não as apresentaram. São, ao todo, 59% dos que disputaram votos nas urnas.

Ora, a magnitude das estatísticas se deve ao descaso com que os políticos sempre trataram o poder fiscalizatório da Justiça eleitoral. Que, então, passem a vê-lo com seriedade. Nem se pode acusar o TSE de draconiano, pois quem ainda não teve a contabilidade de 2010 analisada pode registrar a candidatura e esperar o parecer da auditoria. Manter a essência da resolução é, em última análise, reforçar o combate à corrupção na vida pública.