Título: Cristina recorre à tática do inimigo externo
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Fonte: O Globo, 01/04/2012, Opinião, p. 6

A Argentina está hoje muito melhor que em 1982, quando o general Leopoldo Gualtieri, líder de uma feroz e desgastada ditadura, decidiu investir no sentimento nacionalista e tirou do baú uma guerra contra a Grã-Bretanha pela posse das ilhas Malvinas/Falklands. A ditadura, no fundo, não acreditava que Londres fosse lutar pelas ilhas, mas cometeu um erro terrível, que custou a vida a 650 soldados argentinos e 255 britânicos. Os ingleses retomaram o território, em seu poder desde 1833, e a ditadura, desmoralizada, caiu no ano seguinte.

Amanhã, completam-se 30 anos da invasão das ilhas pela Argentina. Os tempos são outros, mas a política do país vizinho, mesmo na democracia, não perde o cacoete de recorrer ao "inimigo externo" para camuflar problemas domésticos. É o que ocorre com a presidente Cristina Kirchner. A Argentina cresce, ajudada pela valorização das commodities agrícolas de exportação, mas seu governo perde credibilidade diante da falta de um projeto nacional, do estilo casuístico de administrar, da venda de uma imagem que não corresponde à realidade. Se a inflação sobe, faz-se uma intervenção no instituto nacional de estatísticas e muda-se o índice; se a imprensa noticia erros e escândalos no governo, punem-se os veículos de comunicação com perseguição implacável; se as contas nacionais não fecham, nomeia-se um feitor para bloquear importações, inclusive de países do Mercosul, como o Brasil.

A Argentina apresentou à ONU uma queixa contra o que chamou de militarização britânica do Atlântico Sul, depois que Londres anunciou planos de enviar um navio de guerra às águas territoriais das Malvinas. E conseguiu, em dezembro, que o Mercosul passasse a impedir que barcos com bandeira das ilhas atraquem em seus portos. Em recente cúpula sobre segurança nuclear, em Seul, o chanceler argentino, Héctor Timerman, acusou a Grã-Bretanha de enviar um submarino capaz de transportar armas nucleares ao Atlântico Sul, o que levou o representante britânico na reunião, o vice-premier Nick Clegg, a um veemente desmentido.

A busca de petróleo por empresas britânicas nas águas territoriais das Malvinas concorre para acirrar os ânimos. Uma delas descobriu uma área com reservas de 350 milhões de barris, as quais pretende explorar a partir de 2016. Enquanto isso, Cristina Kirchner denuncia que os ingleses estão "depredando nossos recursos naturais, nosso petróleo, nossa pesca."

O caminho do confronto, típico do modo kirchnerista de governar, não levará a nada. A posição tradicional da Grã-Bretanha em relação às ilhas é só dialogar sobre soberania se assim o desejarem os cerca de 3 mil habitantes das Malvinas, que sempre manifestam a vontade de continuar sob domínio britânico.

O truque do inimigo externo só dá resultado num primeiro momento. Logo, a realidade se impõe, como no caso da dura derrota sofrida pelos argentinos em 1982. Em relação aos problemas internos, o mais indicado é investir na governança para enfrentá-los e, na medida do possível, resolvê-los. Não adianta empurrá-los para as águas geladas do Atlântico Sul.