Título: Rede pública que faz aborto legal vai aumentar
Autor: Brígido, Carolina
Fonte: O Globo, 14/04/2012, O País, p. 14

Depois de decisão sobre anencefalia, governo amplia número de hospitais qualificados; CFM define critérios para diagnóstico

BRASÍLIA e RIO. O Ministério da Saúde anunciou ontem a ampliação da rede de hospitais públicos qualificados para realizar aborto nos casos permitidos por lei: risco de morte para a mãe, gravidez resultado de estupro e, agora, em caso de gravidez de feto com anencefalia (sem cérebro). A decisão foi tomada depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) legalizou, por oito votos a dois, a interrupção da gravidez em caso de anencefalia. Atualmente, o país conta com 65 hospitais qualificados. Até o fim do ano, outras 30 unidades públicas serão adicionadas.

O Ministério da Saúde esclarece que todos os hospitais públicos brasileiros estão aptos para realizar abortos permitidos por lei. No entanto, a rede qualificada conta com profissionais mais bem preparados para lidar com a situação. Os hospitais não foram divulgados, por temor de eventual represália às pacientes e à equipe médica. Hoje, o estado com maior número de hospitais qualificados para a realização de aborto é São Paulo, com 11 unidades, seguido do Ceará, com nove. Há apenas um hospital qualificado no Rio de Janeiro. Roraima e Paraná ainda não contam com unidades desse tipo, uma realidade que será mudada até o fim do ano.

No Rio, ontem, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse que até o fim do ano os hospitais estarão aptos para fazer o aborto legal de anencéfalos:

- Agora o que temos a fazer é cumprir o que determina a lei - disse acrescentando que vai expandir a rede de ultrassonografia no pré-natal, "que é o melhor exame capaz de detectar um caso de anencefalia".

Também ontem, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou uma comissão especial com a missão de estabelecer critérios objetivos para o diagnóstico de anencefalia. As regras serão impressas em uma resolução no prazo de 60 dias. Com o procedimento em mãos, os médicos saberão quais exames serão necessários para atestar com total certeza a falta de cérebro.

A intenção é evitar diagnósticos equivocados, para que não sejam abortados fetos com outros tipos de má formação. O trabalho da comissão será iniciado ainda neste mês. Integrarão o grupo representantes das sociedades médicas de pediatria, neurologia, ginecologia e obstetrícia, especialistas em ultrassonografia fetal, e integrantes do CFM e do Ministério da Saúde.

- Precisamos ter critérios bem definidos - alertou o vice-presidente do CFM, Carlos Vital.

De acordo com Vital, o diagnóstico por imagem é o mais eficiente para atestar a anomalia. A comissão também vai decidir quando o diagnóstico deve ser feito e qual o prazo máximo de realização do aborto. E, ainda, se serão necessários mais de um parecer médico antes da realização do procedimento cirúrgico. Vital explicou que, se o médico não concordar em fazer a cirurgia, por convicções pessoais, ele pode se recusar. Nesses casos, a paciente tem o direito de procurar outro profissional.

- O médico que se recusa a fazer o aborto por objeção de consciência está no exercício de seus direitos. Mas isso não impede a gestante de procurar outro médico - disse Vital.

De acordo com Vital, os hospitais públicos e privados que já realizam o aborto hoje estão habilitados a atender as gestantes com fetos sem cérebro interessadas em interromper a gravidez. O médico esclareceu que as instituições de saúde estão plenamente capacitadas para o procedimento. Ele afirmou que, até 2009, mais de 5 mil abortos de fetos com anencefalia foram autorizados pela Justiça.

O CFM divulgou nota elogiando a decisão do STF. "A sentença contribui para o aperfeiçoamento das relações éticas na sociedade, estabelecendo uma ponte sólida entre a medicina e o Poder Judiciário no debate e na deliberação acerca de temas de grande interesse para a assistência em saúde", diz o texto.

"O CFM considera que a antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia - após diagnóstico clínico criterioso - reforça a autonomia da mulher, para quem, nestas situações, a interrupção da gestação não deve ser uma obrigação, mas um direito a ser garantido", conclui.

Lewandowski reafirma que decisão abre precedente

O conselho vai promover seminários em junho para discutir o aborto de um modo geral. A entidade acompanha debates em várias instâncias, mas nunca emitiu uma opinião formal sobre o assunto.

- Quando se discute o aborto, não se quer permissão absoluta, mas a descriminalização. Precisamos ter essa discussão e pautar a sociedade - afirmou Vital.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, autor de um dos dois votos contra a liberação do aborto em casos de anencefalia, voltou a afirmar ontem, no Rio, que a decisão da Corte ao legalizar o aborto em caso de feto sem cérebro na última quinta-feira abre um "precedente perigoso".

Antes de ser homenageado com a Medalha do Mérito Eleitoral, na sede do Tribunal Eleitoral (TRE-RJ), no Centro do Rio, Lewandowski argumentou que o seu posicionamento contrário à maioria dos colegas foi técnico:

- O diagnóstico dos fetos anencefálicos é precário. Não há métodos uniformes no país para detectar esta anomalia genética. Isso abriria um precedente perigoso para o aborto de outras más formações genéticas ou outros tipos de patologias fetais - declarou Lewandowski.

Para o ministro, caberia apenas ao Congresso Nacional fazer qualquer mudança relacionada ao aborto.

- Minha posição foi clara: qualquer alteração que diz respeito à descriminalização do aborto deve ser feita pelo Congresso Nacional, que detém a soberania popular. Entendi que o STF, por meio de uma interpretação conforme a Constituição, não estava autorizado a fazer uma mudança dessa natureza - afirmou o ministro do Supremo.