Título: E a Lei dos Direitos Autorais?
Autor: Martins, Icaro C.
Fonte: O Globo, 21/04/2012, Opinião, p. 7

O filme "Rio - Zona Norte", de1957, mostra as vicissitudes da vida de um compositor que tem seus sambas "roubados" e que, apesar do sucesso de suas músicas, morre na miséria. Esse é um resumo bem simples dessa obra-prima de Nelson Pereira dos Santos, mas, com as devidas ressalvas, a situação do sambista que não recebe seus direitos autorais não é muito diferente da dos cineastas brasileiros. Não são poucos os casos de realizadores que terminam a vida em grandes dificuldades, às vezes contando com a sorte da ajuda de amigos e colegas. Essa foi uma das razões pelas quais, vai fazer seis anos, cerca de cem dos mais expressivos de nossos cineastas enviaram, ao então ministro Gilberto Gil, um abaixo-assinado solicitando a revisão de nossa antiquada e desigual legislação a esse respeito. O objetivo é que os diretores e roteiristas, autores audiovisuais, recebam pela exibição pública de suas obras, tal como já acontece em boa parte do mundo. Assim como já recebem os músicos brasileiros, apesar dos vícios e problemas da organização atual, que deveriam ser também sanados na pretendida reforma.

Como seria de se esperar, houve polêmica, grupos de trabalho com diversas categorias profissionais e consultas públicas, mas, curiosamente, antes de o anteprojeto de lei ser enviado para a Casa Civil, o debate desviou-se de seu objeto inicial, o direito dos autores propriamente ditos, e concentrou-se na defesa dos interesses de dois grandes lobbies. O dos que não pagam direitos sobre a exibição pública das obras audiovisuais e o dos que, em alguns casos com privilégios e distorções absurdas, já recolhem para os músicos e, é bom lembrar, também para grandes gravadoras e editoras.

Conhecendo-se a força e o modo de operar desses poderosos lobbies, o atual silêncio em torno da proposta de reforma da legislação de direitos autorais é preocupante. Existe a possibilidade concreta de o projeto de lei, que surgirá no Congresso Nacional, não atender às demandas básicas dos realizadores e roteiristas e, até mesmo, de agravar distorções que vão contra a plataforma modernizadora, democrática e de justiça social deste governo.

Embora os direitos sobre a exibição pública estejam ligados aos direitos de propriedade intelectual, além de justa remuneração para os autores, eles têm também função trabalhista. Num setor em que cada vez há menos empregos fixos, em boa parte do mundo é das sociedades de gestão coletiva de direitos autorais e conexos que saem recursos para fundos de pensão e assistência à saúde, inclusive para artistas e técnicos. Portanto, engana-se quem pensa que esse tema não seja urgente e prioritário. Ele está na base de toda a economia da cultura.

Dos diversos problemas, existentes nas sociedades de gestão que controlam o Ecad, vem o pleito dos cineastas de ter os direitos sobre a comunicação pública de suas obras com gestão coletiva obrigatória e própria. Pois, ao contrário do que muitos pensam, a função das sociedades de gestão não é apenas arrecadar, mas também, e principalmente, redistribuir os direitos recolhidos.

Em alguns países, inclusive, são especificamente classificadas como "Sociedades Civis de Arrecadação e Redistribuição de Direitos", supervisionadas e fiscalizadas por ministérios e órgãos dos respectivos governos, e ninguém diz que há interferência estatal. Por isso, as sociedades de realizadores e roteiristas da Europa não usam critérios exclusivamente financeiros, para se classificar entre si e também a seus sócios, mas vários outros, como tamanho e quantidade das obras, gênero, se seriada, produto único, características de exibição, etc. Em suma, avaliam quesitos visando a corrigir desequilíbrios e a reforçar a solidariedade, ao invés de dividir os autores. Parte-se do princípio que as leis não são feitas para deixar os fortes e ricos ainda mais fortes e ricos, reforçando e cristalizando diferenças sociais. Elas são feitas justamente para corrigir distorções, proteger os mais fracos e promover certo equilíbrio social.

Na disputa com grupos poderosos, de interesses nem sempre confessáveis, os autores audiovisuais são evidentemente a parte mais frágil e a com menos recursos para atuar no Congresso Nacional. Em função disso, espera-se atenção dos poderes Executivo e Legislativo, para a urgência do tema e especialmente para os pleitos dos realizadores e roteiristas, ou poderemos ter uma nova lei que simplesmente atualizará os desvios e injustiças atuais.

Nesse caso, os cineastas correm o risco de terminar como o sambista Espírito, magnificamente interpretado por Grande Otelo, e deparar-se com a triste constatação do bem-intencionado personagem de Paulo Goulart, de que chegou "tarde demais". Daí a pergunta: "O que está acontecendo com a reforma da Lei dos Direitos Autorais?"

ICARO C. MARTINS é diretor da Associação Paulista de Cineastas