Título: Curso na Maré facilita o caminho da favela para a pós-graduação
Autor: Neto, Lauro
Fonte: O Globo, 30/04/2012, O País, p. 4

Depois de inovar com pré-vestibulares comunitários, ONGs ajudam a ingressar no mestrado e doutorado Um dos primeiros conjuntos de favelas a ter um curso de pré-vestibular comunitário, o Complexo da Maré está dando mais um passo à frente. Desde março, cerca de 50 alunos de comunidades carentes assistem a aulas preparatórias para mestrado e doutorado no projeto Novos Saberes. A parceria entre o Observatório das Favelas e a Redes de Desenvolvimento da Maré tem o objetivo principal de ampliar a diversidade dos perfis socioeconômicos e raciais de estudantes de pós-graduação stricto sensu em universidades brasileiras.

É uma extensão do programa Rede de Saberes que, em 13 anos de existência, possibilitou a entrada de quase mil moradores da Maré no ensino superior.

O novo curso atraiu alunos como a professora Viviane Couto, de 32 anos, que vive na comunidade desde que nasceu, e estudou Letras (Português/ Espanhol) na UFRJ graças ao cursinho pré-vestibular local. Agora, tenta um mestrado na área de Educação.

— Tentei o vestibular duas vezes sem sucesso. Quando fiz o pré, passei de primeira para Uerj, UFF e UFRJ. Mas, na faculdade, tive problemas para participar de pesquisas e do meio acadêmico, por ser um mundo muito diferente do meu — conta Viviane, que deixou o emprego de secretária para se concentrar nos estudos e, hoje, é professora do município. — Mas quero continuar estudando para fazer um trabalho melhor. O curso é um bom caminho para aprender coisas que não aprendi na universidade e refazer os contatos com o meio acadêmico.

Educação é área de maior procura l Os coordenadores, docentes e palestrantes convidados do curso também são professores e pesquisadores de universidades como UFF e UFRJ. Entre eles, o coordenador geral, Jailson de Souza e Silva, e o professor Jorge Luiz Barbosa, que ensina metodologia de pesquisa.

— Precisávamos de um projeto com uma política de permanência na universidade. Este nosso novo filho tem a meta de democratizar a pós-graduação com o acesso de pessoas de origem popular. As favelas são invisíveis na universidade, um espaço ainda muito elitista, meritocrático e branco — afirma Barbosa, professor da UFF e diretor do Observatório das Favelas.

Nas aulas dele, os estudantes aprendem tópicos como elaboração de projetos de pesquisa, significação do tema escolhido, metodologia e técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. Em pouco mais de um mês de aulas, a aluna Julie Alves, de 36 anos, já conseguiu definir o seu tema: "Como os meios de comunicação da Maré podem contribuir para o trabalho do Conselho Tutelar".

Formada em jornalismo numa faculdade particular e conselheira tutelar, ela uniu os dois campos de interesse.

— No início, me senti um pouco perdida e até pensei em desistir. Tinha a ideia na cabeça, mas não sabia como desenvolvê- la. Demorei muito tempo para entrar na universidade e, agora, quero mostrar que há pessoas de valor intelectual dentro da comunidade — diz Julie, que se formou no ensino médio na rede estadual aos 18 anos, virou mãe aos 27 e só conseguiu entrar na faculdade aos 30, graças a uma bolsa.

Denise Ramos, de 30 anos, é a única da turma que pretende fazer mestrado em Ciências Contábeis. A área de maior procura é a de Educação, com 15 alunos, seguida por Serviço Social e Sociologia (sete cada uma); Direito (quatro estudantes); Geografia e Comunicação (três cada); História, Letras, Planejamento Urbano e Artes (dois cada). Outras carreiras, como Antropologia, Museologia, Administração Pública e Ciências Políticas/Políticas Públicas só têm, no projeto, um aspirante cada.

Aulas de língua estrangeira l Não há candidatos para Biomédicas e Exatas. Para Denise, que mora na comunidade do Boogie Woogie, na Ilha do Governador, lidar com números foi difícil mesmo após fazer ensino técnico em contabilidade na rede estadual. Depois de terminar a graduação numa faculdade particular com bolsa de 90%, ela fez a prova da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad), mas não passou.

— Tive dificuldades em matemática financeira e estatística durante a faculdade. Mas, quando tinha desafios, estudava três vezes mais, não saía nem via TV.

Aqui na Maré, elaborei um projeto e já tenho o que dizer para a banca avaliadora — conta Denise, que escolheu o tema "O uso da Controladoria como forma de minimizar fraudes" para submeter a UFRJ e Uerj.

No Novos Saberes, os alunos têm aulas de língua estrangeira instrumental (inglês, francês e/ ou espanhol), além de metodologia de pesquisa e produção de texto acadêmico, duas vezes por semana, das 18h30m às 21h30m.

O curso custa R$ 622 e pode ser parcelado em cinco vezes.

— Já tinha a ideia de fazer um cursinho para tentar o mestrado. Mas, em qualquer outro, pagaria o dobro por quatro matérias em dois meses — compara Denise.

Paulo Sérgio Souza, de 43 anos, destoa do resto da turma. Morador do Complexo do Alemão, o servidor público estudou no Colégio Pedro II, formou-se em Direito e termina pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil, ambos em universidades privadas, com bolsa. Para tentar o mestrado, já decidiu seu tema: "Violação dos direitos humanos na administração pública".

— Sempre gostei de estudar.

Na 4ª série, fiquei entre os oito melhores alunos da rede pública.

Depois do ensino médio, ficou mais difícil, porque constituí família e fiquei 15 anos sem estudar, antes da faculdade.

Na turma, chama a atenção uma jovem com pinta de estrangeira.

Trata-se da belga Anna Massoz, de 24 anos. Formada em Psicologia pela Université de Liège, no Sul do seu país, ela faz mestrado em Antropologia no Museu Nacional e estuda a trajetória individual e social dos alunos do projeto Novos Saberes.

— Cheguei ao Brasil totalmente inocente de como funcionava o sistema educacional.

Não entendia por que estudantes da rede privada na educação básica faziam faculdade pública e vice-versa. Com o tempo, aprendi o que era um pré-vestibular e descobri a Maré.

Quando cheguei aqui, perguntaram se eu era a professora de inglês — conta Anna.