Título: Cerco ao trem pagador
Autor: Lima, Daniela
Fonte: Correio Braziliense, 20/09/2009, Política, p. 2

Justiça pretende julgar até o fim deste ano a legalidade da efetivação de 1,5 mil servidores no Senado, todos sem concurso público. Processo, que se arrasta de 1985, está na mira do CNJ

Entre os beneficiários da decisão de 1985, estão funcionários da cúpula da Casa, como Doris Peixoto e os ex-diretores João Carlos Zoghbi e Agaciel Maia

Depois de 24 anos, o maior trem da alegria da história do Senado pode ter um desfecho na Justiça. Processo que tenta derrubar a efetivação de 1.554 servidores à base de uma canetada, em 1985, foi incluído no programa Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cuja proposta é julgar até o fim deste ano disputas judiciais iniciadas antes de 2005. A inclusão do processo na força-tarefa do Judiciário representa uma reviravolta no caso. Em 2006, 21 anos após seu início, uma decisão da Justiça Federal do Distrito Federal ordenou a anulação dos atos que efetivaram as pessoas sem concurso público.

No mesmo ano, no entanto, a defesa contratada pelo Sindicato dos Servidores do Legislativo (Sindilegis) conseguiu encontrar uma falha formal na elaboração da ação popular, fazendo com que a tramitação do processo voltasse praticamente à estaca zero. Entre os beneficiados diretamente pelo ato do então presidente do Senado, Moacyr Dalla, existem pelo menos 11 falecidos, além de aposentados que recebem remuneração mensal segundo as regras do funcionalismo público. Outros agraciados chegaram a ocupar os cargos mais altos da Casa nesses 24 anos.

Na lista, estão jornalistas e parentes de políticos influentes, como Flávia Marcílio, filha do ex-presidente da Câmara Flávio Marcílio, e Ricardo Augusto de Rezende Dalla, filho de Moacyr Dalla.

Também embarcaram no trem da alegria protagonistas dos mais recentes escândalos da instituição.

Foi o ato questionado na Justiça que transformou em servidores públicos Agaciel Maia, ex-diretor-geral da Casa, e João Carlos Zoghbi, ex-diretor de Recursos Humanos, acusados de terem responsabilidade pelo arquivamento de decisões que serviram para nomear afilhados e parentes de políticos nos últimos 15 anos ¿ os tais atos secretos. Nomes que ainda exercem poder também foram efetivados pela canetada. Caso da atual diretora de Recursos Humanos do Senado, Doris Marize Peixoto.

Em 1985, a efetivação foi um escândalo. Todos foram nomeados como funcionários da Gráfica do Senado. Na ocasião, a imprensa colocou o número de funcionários do setor na ponta do lápis e concluiu que, se todos fossem trabalhar, cada um ocuparia um espaço de apenas 2,5 metros quadrados. A ação popular que questiona as nomeações foi aberta por dois advogados de Brasília, mas a Advocacia-Geral da União (AGU) passou a defender a anulação dos atos que criaram o trem da alegria. Ainda assim, a falha que abriu espaço para a defesa enterrar a decisão que pedia a anulação dos atos não foi corrigida.

Falha

As citações dos servidores que respondem à ação foi feita por edital, prática hoje pouco utilizada pelo Judiciário. Os editais, no entanto, não alcançaram os herdeiros dos beneficiados com o trem da alegria que haviam falecido. Com isso, o advogado que representava os servidores do Senado, Davi Machado Evangelista, conseguiu, na segunda instância, fazer com que o processo voltasse à estaca zero, desde a fase de citação dos envolvidos. Hoje, no entanto, os funcionários do Senado estão sem advogado de defesa. O contrato com o escritório que lhes garantiu a permanência em seus empregos se encerrou em 2006. ¿Estamos conversando com os servidores, porque o sindicato não tem condições de arcar com os custos do processo¿, disse o presidente do Sindilegis, Magno Mello.

A Advocacia-Geral da União argumentou que a falha na citação dos envolvidos com o processo foi resultado da ação inicial. ¿A AGU assumiu a ação quando esta já havia sido iniciada. Ainda assim, com todas as dificuldades do processo, reafirma o compromisso de ir até as últimas consequências na defesa da moralidade no serviço público¿, declarou o coordenador-geral jurídico da Procuradoria da União da 1ª Região da AGU, Diogo Paulus.

E EU COM ISSO Mesmo se a Justiça considerar irregular a efetivação dos servidores do Senado, dificilmente o dinheiro pago a eles ao longo de quase 25 anos retornará aos cofres públicos. Há entendimento de que, ainda que o ato seja considerado ilegal, os funcionários trabalharam, e, portanto, têm direito aos vencimentos que receberam.

A cronologia do caso

Em 19 de dezembro de 1984, às vésperas do recesso parlamentar, o então presidente do Senado, Moacyr Dalla, assina ato que efetiva 1.554 funcionários como servidores públicos da Casa

Um mês depois, o caso estoura na mídia. Reportagens mostraram uma série de filhos, parentes e afilhados políticos, tanto de deputados quanto de senadores, que haviam se beneficiado com as efetivações

Em 23 de janeiro de 1985, os advogados Pedro Calmon e Jonas Candeia dos Santos dão início à ação popular que questiona na Justiça Federal do Distrito Federal os atos, fazendo referencia a eles como ¿nacionalmente conhecidos sob a denominação de Trem da Alegria do Senado¿

Em 1997, a AGU passa a atuar no caso, defendendo o interesse da União em anular os atos e, em consequência, as efetivações

Em 2002, o escritório de Reginaldo de Castro assume a defesa dos servidores. Em 2006, decisão da primeira instância ordena a anulação dos atos. No mesmo ano, o advogado Davi Evangelista entra com mandado de segurança alegando a falha no processo e ganha a causa. A ação volta à primeira instância, devendo recomeçar da fase de citação dos funcionários

No fim de 2006, o contrato dos servidores com o escritório de Castro se encerra. Desde então, eles estão sem representante

Em 2009, a ação popular entra no programa Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça.

A juíza Mônica Sifuentes, da Justiça Federal do DF, assume o processo. O Senado é oficiado a entregar relação dos funcionários efetivados que já morreram.

Ofício à Casa

No último dia 1º, chegou à Presidência do Senado um ofício da 3ª Vara de Justiça Federal do Distrito Federal. Assinado pela juíza Mônica Sifuentes, o documento, recebido pelo chefe de gabinete do presidente José Sarney (PMDB-AP), estipula um prazo de 30 dias para que a Casa informe se, além dos 11 servidores já identificados, há algum falecido entre os 1.554 beneficiados pelo trem da alegria de 1985.

Mônica Sifuentes é classificada pelos colegas de trabalho como ¿austera¿ e ¿exemplar¿. O envio do ofício ao Senado foi uma sinalização da disposição da juíza em dar agilidade ao andamento do processo, que desde 2006 voltou a tramitar na primeira instância. Mas, ainda que seja julgado até o fim deste ano, a possibilidade de recursos em instâncias superiores não pode ser descartada tanto pela acusação quanto pela defesa. ¿Ainda assim, não acredito que ele se arraste por tanto tempo, como agora¿, disse Diogo Paulus, da AGU.

A grande questão do processo se resume à data dos atos que efetivaram os funcionários. Em 1985, a Constituição previa a figura do concurso para nomeação de servidores públicos, mas não proibia a nomeação por atos administrativos. Na ação popular, no entanto, os advogados que a iniciaram e a AGU sustentam que a Mesa Diretora não tinha competência para efetivar os funcionários, argumentando que cabia que o extinto Departamento Administrativo de Pessoal Civil (Dasp) tal função.

Apenas em 1988, na reforma constitucional, o ingresso em regime do funcionalismo público foi condicionado à aprovação prévia em concurso. A reportagem tentou contato com os assessores da presidência do Senado, para saber que encaminhamento foi dado ao ofício, mas não teve sucesso. O mesmo aconteceu com a assessoria da Diretoria-Geral da Casa. (DL)