Título: Desperdício para seis décadas
Autor: Mello, Alessandra
Fonte: Correio Braziliense, 20/09/2009, Política, p. 4

Ex-prefeito mineiro comprou ataduras suficientes para mais de 60 anos. Parte do material sequer existe

Os moradores de Lassance, cidade de 6,5 mil habitantes localizada no norte de Minas Gerais, a 280 quilômetros de Belo Horizonte, não precisam se preocupar caso necessitem enfaixar alguma parte do corpo devido a fraturas e torções. A administração passada comprou ataduras de gesso que dariam para atender toda a demanda da população pelas próximas seis décadas. A quantidade também é suficiente para engessar de uma vez quase a metade de toda a população residente na área urbana, que só conta com um centro de saúde, onde não existe nem mesmo aparelho de raios X para detectar fraturas.

Apesar de o município utilizar em média duas ataduras de gesso por mês, de uma só vez a administração passada comprou 1,6 mil unidades, quantidade suficiente para 800 meses, ou 66 anos. Como agravante, a maior parte desse material só existe na nota fiscal, paga ao fornecedor quatro dias depois das eleições municipais do ano passado. Além dessa compra, o ex-prefeito Cristovão Colombo Vita Filho (PSDB), conhecido como Tovinho, também adquiriu 50 mil abaixadores de língua (palitinhos de madeira usados para examinar a garganta do paciente), quantidade que daria para as próximas duas décadas. O município tem apenas dois médicos, mas foram comprados 25 estetoscópios, que também não foram encontrados em estoque pela administração atual.

As estimativas sobre o tempo de consumo desses produtos foram feitas pela Secretaria Municipal de Saúde de Lassance com base na demanda mensal do único centro de atendimento à população que existe na cidade. Quem vendeu esses e outros produtos para a prefeitura foi a Distribuidora Santa Mônica, registrada em nome de Almindo Gomes da Silva (DEM), candidato derrotado a vereador em Santana do Riacho, na região central do estado, nas eleições do ano passado.

De junho a novembro de 2008, a Distribuidora Santa Mônica recebeu dos cofres do município R$ 894 mil, valor que corresponde a cerca de 64,7% do orçamento anual da cidade para investimento na saúde, segundo informou a secretária municipal de Saúde Solange Costa Lucena. ¿Apesar da quantidade exagerada das notas fiscais, quase nada foi encontrado em nosso estoque¿, afirmou Solange, que trabalha há 10 anos como enfermeira na cidade.

Papelaria

Na Receita Federal, a empresa de Almindo está registrada como fornecedora de material de escritório e papelaria. Ela deveria funcionar em Belo Horizonte, mas no local as portas estão fechadas e não há nenhuma placa indicando que ali existe ou já existiu uma papelaria, muito menos uma distribuidora de produtos médicos. Essa empresa já é investigada por fornecimento para outros municípios mineiros.

As denúncias são investigadas pelo promotor da comarca de Várzea da Palma, Felipe Campos Lucena. Ele disse que já solicitou cópia de toda a documentação para a atual administração. O levantamento está sendo feito pelo atual prefeito, Idison Fernandes (PSDB), que não foi localizado pela reportagem para comentar o apuro.

LEGADO DE CARLOS CHAGAS Há 100 anos, o pequeno município de Lassance era destaque nacional por uma descoberta que garantiu a saúde de milhões de pessoas em todo o mundo. Foi lá que o médico e pesquisador Carlos Chagas identificou uma moléstia que leva seu nome: a doença de Chagas. Graças ao feito, ele foi indicado para o Prêmio Nobel.