Título: Destino de 120 milhões em jogo
Autor: Couto, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 20/09/2009, Brasil, p. 11

Licitação de 98% das linhas de ônibus vai afetar o futuro das viagens rodoviárias no país. ANTT tenta convencer TCU a adiar o processo até a conclusão de um estudo detalhado, num mercado que movimenta R$ 3 bilhões por ano

O motorista Geraldo Oliveira improvisa uma cama no ônibus que liga Brasília a Bom Jesus da Lapa: trajeto difícil

Bom Jesus da Lapa (BA) ¿ Uma megalicitação a cargo da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) tem a difícil missão de criar um marco regulatório e melhorar a qualidade das viagens rodoviárias para dentro e fora do Brasil. A licitação de 1.475 ligações ¿ ou 98% da malha nacional ¿ deve afetar o destino escolhido pelos 120 milhões de passageiros a cada ano. As empresas do setor, que movimentam anualmente quase R$ 3 bilhões, são contrárias à mudança e pressionam a autarquia federal a tentar adiar o leilão, pela segunda vez, junto ao Tribunal de Contas da União (TCU). O Correio embarcou na linha que faz o trajeto de Bom Jesus da Lapa (BA) até Brasília, um dos itinerários que devem ser regularizados, para conferir como anda a situação dos roteiros de ônibus.

Prevista inicialmente para ocorrer em outubro do ano passado, a concorrência foi adiada. Em setembro de 2008, houve a prorrogação para dezembro deste ano. Agora, a ANTT tenta convencer o TCU a postergar, pela segunda vez, a licitação. Se atender o pedido da agência reguladora, a megalicitação só será realizada em novembro de 2010. ¿É uma irresponsabilidade manter o cronograma atual. Precisamos de mais tempo para concluir os estudos de demanda, que se iniciarão entre novembro de 2009 e março de 2010, e já conta com o apoio da Universidade de Brasília (UnB) e de mais 40 técnicos da agência¿, afirma Bernardo Figueiredo, diretor-geral da ANTT.

Além da melhoria da qualidade do transporte rodoviário, a autarquia federal quer estimular a concorrência e transformar o embarque e desembarque dos passageiros que viajam de ônibus em procedimentos similares aos da aviação civil. ¿Estamos trabalhando para essa melhoria. Queremos rastrear os ônibus, para evitar assaltos, treinar motoristas, incentivar a reforma das rodoviárias e controlar o sistema, pois hoje não sabemos quantas pessoas ingressam em cada linha¿, admite Figueiredo.

A intenção do leilão é reduzir o valor das passagens, uma vez que a tarifa atual será usada como teto para a megalicitação. As 1.475 linhas devem ser desmembradas e licitadas em 125 lotes, que vão englobar as mais rentáveis e as deficitárias. Atualmente, somente 9% das linhas têm duas ou mais empresas atuando. Depois da concorrência, o percentual deve passar para 26%. Para não ficarem de fora do mercado, as 253 detentoras das das concessões de todo o país deverão se unir em consórcios para concorrer aos 125 lotes.

O TCU, que analisa a licitação como prioridade zero, tem três caminhos: manter o prazo do leilão para dezembro deste ano, aceitar o pedido da ANTT de realizar o processo em 2010, ou estabelecer um cronograma intermediário. Relatado pelo ministro Walton Alencar Rodrigues, o processo pode entrar na pauta do tribunal a qualquer momento. Procurada pela reportagem, a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati) não quis se manifestar sobre o assunto. Com 1.200 ônibus, 150 linhas e faturamento de R$ 470 milhões no ano passado, a Itapemirim, maior empresa do setor, informou que cabe à Abrati se pronunciar sobre a licitação.

Um dos motivos que levaram a ANTT a solicitar novos estudos é que o setor tem cadastrados 12 mil ônibus, sendo que a frota necessária é de 4 mil veículos. Porém, nesse contingente total, estão incluídos os de propriedade de agências de turismo. Além disso, pode haver duplicação de registros e a não baixa dos que deixaram de circular.

Improviso

A linha da empresa Central Bahia que faz a ligação de Bom Jesus da Lapa (BA) a Brasília, utilizada pela reportagem na semana passada, está prestes a ser licitada pela ANTT. Falta de conforto e segurança dos veículos é o que mais incomoda nos 680km que dividem as duas cidades. ¿Os ônibus são péssimos e apertados. Não dá nem para esticar as penas¿, reclama Amália do Amaral, 45 anos, agente comunitária de saúde e moradora de Riacho de Santana (BA). Para vencer o cansaço e recompor as energias, o motorista Geraldo de Oliveira, 53 anos, improvisou uma cama no fundo do ônibus. ¿A empresa que deu a ideia. Enquanto o outro colega dirige, eu descanso¿, diz Oliveira, que tem 15 anos de profissão. Um outro motorista, que não quis se identificar, informou que a empresa orienta andar com o ar-condicionado desligado para evitar as manutenções do aparelho. ¿Como a estrada é ruim , a poeira danifica o ar¿, observa. Procurada pela reportagem, a Central Bahia não retornou as ligações.

entrevista - BERNARDO FIGUEIREDO Possibilidade de ficar pior

Responsável pelo acompanhamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) nas rodovias e ferrovias, Bernardo Figueiredo, 58 anos, diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), tem a missão de comandar a licitação de todo o sistema rodoviário interestadual do país, estimado em pelo menos 2 mil ligações. Economista e com 35 anos dedicados à área de transportes, Bernardo disse ao Correio que, se o Tribunal de Contas da União (TCU) não adiar a licitação, pode-se perder a chance de modernizar o setor. ¿Se for feito de qualquer jeito, com certeza, vamos é piorar o que está aí, e não melhorar.¿

Como estão os estudos realizados pela autarquia federal? Fizemos um primeiro levantamento e identificamos a necessidade de realizar uma pesquisa mais ampla, porque tínhamos evidência de que o número de passageiros declarados pelas empresas de ônibus estava muito subestimado. Estamos contratando um estudo que deve ir a campo, de novembro a março, para recalibrar as informações que já temos sobre o setor e fazer, em seguida, a licitação.

Pode haver demissão ou redução de linhas? O que estamos fazendo é acabar com o conceito de linha e implantar a concepção de rede. Porque existem linhas que dão dinheiro e outras deficitárias. E as empresas equilibram isso em seu ambiente. Então, como não podemos licitar linha a linha, vamos criar redes, independentemente de serem ou não lucrativas. Hoje, as empresas de ônibus já concordam que isso vai promover uma racionalização no sistema, sem demissões.

A ANTT tem um plano B caso o TCU decida manter o cronograma atual da licitação? Não. Caso o tribunal decida por esse prazo, temos que ver. Se não tiver nenhuma alternativa legal para fazer adequadamente, vamos fazer por força da Justiça, de uma forma que não é a mais viável, perdendo a grande oportunidade de modernizar o setor. Se tiver que licitar isso de qualquer jeito, com certeza, a chance que temos é de piorar o que está aí, e não de melhorar. (RC)