Título: Austeridade autofágica
Autor: Nogueira Batista JR., Paulo
Fonte: O Globo, 12/05/2012, Opinião, p. 7

Já perdi a conta de quantos governos europeus foram defenestrados desde a eclosão da crise do euro. É um atrás do outro. Os episódios mais recentes desse processo traumático foram a derrota eleitoral do presidente Sarkozy e a dos dois partidos gregos comprometidos com o programa de austeridade. Em consequência, a área do euro está de novo à beira do abismo.

A inviabilidade da estratégia de ajustamento imposta na Europa vai ficando cada vez mais evidente. A influência dominante, como se sabe, é da Alemanha - país que lidera as decisões europeias e mais contribui para o financiamento dos programas aplicados nos países em crise.

Lamentavelmente, os alemães não primam nem pela flexibilidade nem pela sutileza na abordagem dos problemas econômico-financeiros. Do ângulo alemão, tudo se resume a dois aspectos: a) ajustar as finanças públicas a ferro e fogo; e b) realizar reformas estruturais para aumentar a competitividade das economias. A austeridade fiscal deve acontecer mesmo que as economias estejam em recessão profunda. As reformas estruturais dos mercados de trabalho e de produtos, sempre mais difíceis em tempos de desemprego alto, devem prosseguir custe o que custar - e ainda que não produzam resultados no curto prazo.

A equação não fecha. A austeridade fiscal, que combina corte de gastos e aumentos da carga tributária, derruba a demanda agregada e os já deprimidos níveis de atividade e de emprego. Com isso, cai a receita tributária e aumentam certos tipos de despesa, como o seguro-desemprego. A razão dívida pública/PIB continua subindo, mesmo em países que fazem considerável esforço de austeridade fiscal.

Em outras palavras, a austeridade acaba sendo autofágica. A recessão induzida pelo ajuste fiscal solapa a própria estabilização das contas públicas. Como os países em crise não têm mais moeda nacional, não podem contrabalançar o efeito recessivo do ajuste fiscal com políticas monetárias expansivas e depreciação cambial. O resultado é a completa falta de horizonte em termos de recuperação econômica.

A recessão prolongada agrava também a fragilidade das instituições financeiras europeias, que nunca se refizeram inteiramente da crise iniciada em 2007 e ainda não digeriram, em vários países, o legado altamente problemático das bolhas nos mercados hipotecários. A recessão contribui para manter os preços dos ativos em queda, aumentar a inadimplência do setor privado e reduzir o valor de mercado dos títulos públicos nas carteiras dos bancos. A fragilização dos bancos reduz a oferta de crédito e realimenta, por sua vez, o processo recessivo.

Mesmo que fosse bem-sucedida, a austeridade fiscal não resolve por si mesma o problema de competitividade acumulado no Sul da Europa. As reformas estruturais podem ajudar, mas seus efeitos são lentos. Não se vê como a Grécia, a Espanha ou Portugal conseguiriam com grandes esforços reformistas gerar ganhos de produtividade extraordinários e recuperar, em prazo aceitável, competitividade em relação ao Norte da Europa e o resto do mundo.

A alternativa clássica, a chamada "desvalorização interna", é igualmente lenta e dolorosa - e provavelmente inviável. Na impossibilidade de depreciar a taxa de câmbio, o ajustamento de preços relativos com o exterior se faria pela diminuição dos preços e salários nominais. Era o mecanismo de ajuste do antigo padrão-ouro. A dificuldade de implementá-lo em sociedades modernas e razoavelmente democráticas foi uma das principais razões do colapso final desse regime monetário durante a Grande Depressão da década de 1930.

O euro é o equivalente contemporâneo do padrão-ouro. Não por acaso, o que estamos vendo na Europa é uma tremenda regressão das políticas econômicas e do quadro social e político.

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

é

economista e diretor-executivo pelo Brasil e mais oito países no Fundo Monetário Internacional, mas expressa os seus