Título: Futuro da comissão depende da sociedade
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 19/05/2012, O País, p. 14

GRACIELA MEIJIDE: A comissão investigou o que aconteceu com os desaparecidos. Não incluiu presos políticos, exilados, nem assassinados. Este foi um aspecto que a diferenciou de outras comissões da verdade, talvez mais tradicionais, nas quais eram ouvidas vozes de ambos os lados. Assim foi o caso da África do Sul, que é outro modelo. Cada comissão vai adotando as características culturais e políticas de cada país. Na Argentina, a Conadep foi possível, assim como o julgamento dos militares, porque antes disso os militares foram derrotados na guerra das Malvinas (1982).

Sem a guerra a comissão não teria sido possível?

GRACIELA: Não. Teríamos uma saída similar à do Uruguai. Um governo de transição, talvez comandado por um militar, e nenhuma investigação nem julgamento.

As famílias dos desaparecidos colaboraram com a comissão?

GRACIELA: Sim, claro, todos colaboraram. Muitos já tinham apresentado denúncias em organismos de defesa dos direitos humanos. Antes da comissão, já existiam cinco mil denúncias sobre pessoas desaparecidas durante a ditadura. Na comissão, esse número duplicou. As pessoas que tinham medo, deixaram de tê-lo, e muitas pessoas que tinham sido sequestradas e torturadas decidiram prestar depoimento. A participação de 600 sobreviventes foi uma das peças fundamentais de nosso trabalho.

Pessoas que antes nunca tinham falado?

GRACIELA: Sim, a maioria delas. Muitos tinham se exilado. As informações dadas pelos sobreviventes aumentaram a qualidade das provas e nos permitiram avançar. O desaparecimento de pessoas é um delito clandestino, e o depoimento dos sobreviventes foi essencial para apresentar denúncias na Justiça. As pessoas nos contaram onde estiveram detidas, por quem foram torturadas e, também, quem tinham visto nos centros clandestinos de tortura, pessoas que depois desapareceram.

Qual sua opinião sobre a Comissão da Verdade brasileira?

GRACIELA: Nesta etapa, o que vai aparecer é a memória das vítimas e dos familiares que, com toda naturalidade, é uma memória ancorada no passado. Certamente avançarão, não na construção de uma única verdade, mas sim na busca de todas as verdades que possam aparecer sobre um momento histórico. Isso é muito importante para todos, não apenas para as vítimas.

A senhora era a única parente de um desaparecido...

GRACIELA: Sim, a única. Fui convidada porque pertencia à Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos. Queriam uma pessoa que conhecesse profundamente a situação dos familiares e pudesse se encarregar de organizar os depoimentos. Tive dúvidas em aceitar, porque, na verdade, a assembleia e outros organismos defendiam a necessidade de que as investigações fossem realizadas pelo Congresso. Queríamos um pronunciamento de ambas as câmaras sobre os crimes cometidos, porque, naquele momento, não existia a expectativa de um julgamento na Justiça civil, como finalmente ocorreu. Finalmente, aceitei porque estava claro que o Congresso não atuaria e a Conadep era a única coisa que tínhamos.

Nosso objetivo era aproveitá-la ao máximo e fizemos um trabalho impressionante.

Qual era sua função?

GRACIELA: Era secretária de denúncias, tínhamos 80 pessoas trabalhando em nossa equipe. Corríamos contra o tempo, porque primeiro nos deram seis meses e depois uma prorrogação de outros 90 dias. No total, foram nove meses de trabalho. Durante esse processo, tínhamos uma secretaria legal e técnica que ia elevando à Justiça as denúncias que conseguíamos construir com os depoimentos e as provas que apareciam. Também fazíamos inspeções em centros clandestinos de torturas, muitas vezes com a presença de ex-presos políticos que tinham passado por eles.

Qual foi a reação da sociedade quando a Conadep começou a informar sobre os primeiros casos?

GRACIELA: Mais uma vez, a guerra das Malvinas marcou um antes e um depois em nosso país. As pessoas, de repente, começaram a perceber o que estava acontecendo e a pensar que se os militares tinham sido capazes de provocar uma guerra, também tinham sido capazes de fazer o que nós, as associações de familiares desaparecidos, estávamos denunciado há vários anos. Nossa credibilidade se fortaleceu e a Conadep estabeleceu um vínculo muito forte com a sociedade. Seus membros eram pessoas de muito prestígio, respeitadas, e com um ótimo relacionamento com diferentes setores. A imprensa acompanhou diariamente nosso trabalho e nós atuamos com muita sobriedade. Estávamos buscando a verdade e a Justiça.

Os membros da comissão receberam ameaças durante as investigações?

GRACIELA: Sim, claro, houve ameaças. Mas fizemos tantas coisas, suportamos tantas outras, em momentos em que pensávamos que a ditadura não acabaria nunca. Depois, quando já era nosso momento, não havia tempo para ter medo.

Mas sabia-se do clima de mal estar entre os militares...

GRACIELA: Sim, claro, a pressão foi grande. Mas a Conadep nunca esteve em risco. Alfonsín sempre achou que uma comissão parlamentar traria mais problemas e por isso optou por uma comissão de notáveis. Ninguém achou que chegaríamos tão longe, que conseguiríamos o depoimento dos 600 sobreviventes. Também contamos com a participação de mais de nove mil familiares de desaparecidos.

Qual foi a maior contribuição da Conadep?

GRACIELA: Alfonsín ganhou em 1983 porque prometeu investigar. As pessoas votaram e queriam isso, e a sociedade sentiu-se parte de nosso trabalho. A medida que ia aparecendo o horror, a empatia dos argentinos aumentava ainda mais.

Como a senhora vê o processo brasileiro e o futuro da Comissão da Verdade?

GRACIELA: O futuro dependerá da reação e do que for demandado pela sociedade e as vítimas. Da força dessa demanda e do eco que ela tiver na sociedade. Os governos interpretam as sociedades.