Título: A História é incensurável
Autor: Moreno, Jorge Bastos
Fonte: O Globo, 20/05/2012, O País, p. 14

Há poucos dias, em solenidade histórica, a presidente Dilma abriu seu discurso de instalação da Comissão da Verdade, citando meu marido e dizendo que Ulysses, se estivesse ali, ocuparia lugar de destaque na cerimônia. Agradeço e concordo. Meu marido, de fato, sempre carregou seus mortos nos palanques e nas tribunas oficiais.

Nunca houve outro político brasileiro, em qualquer tempo, que mais cobrou e denunciou as atrocidades praticadas pela ditadura. Daí o seu arrebatador caso de desamor com os militares, plenamente correspondido.

É quase certo que a presidente não saiba - e não teria obrigação de sabê-lo - que a origem da frase de Ulysses citada por ela vem da sua obra-prima "Navegar é preciso", discurso com o qual se apresentou como anticandidato à Presidência da República contra o general Geisel, em 1973.

Impedido, em cima da hora, do direito de transmissão, pelo rádio e pela televisão, da sua anticandidatura, meu marido denunciou no discurso:

"O drama dos censores é que se fazem mais furiosos quanto mais acreditam nas verdades que censuram. E seu engano fatal é presumir que a censura, como a mentira, pode exterminar os fatos, eliminar os acontecimentos, decretar o desaparecimento das ocorrências indesejáveis.

A verdade poderá ser temporariamente ocultada, nunca destruída. O futuro e a História são incensuráveis."

Compromisso com os mortos

"Perguntei-lhe o que representava aquela lista. E meu marido: 'É o meu acerto de contas com a ditadura!'"

Como anticandidato, e tendo como companheiro de chapa o então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, meu marido passou a ter mais contato com a dura realidade brasileira. Panfletando nas ruas e praças do país, Ulysses era constantemente abordado por parentes, companheiros de perseguidos e até mesmo com algumas das vítimas que se escondiam na clandestinidade. Antes disso, como presidente do MDB há um ano apenas, meu marido tinha suas atividades restritas aos gabinetes e corredores sombrios do Parlamento.

Pois foi naquele ano de 1973 que o destino de meu marido cruzou com o de uma das maiores vítimas da ditadura, o estudante Honestino Guimarães. A mãe de um dos colegas do estudante trabalhava na taquigrafia da Câmara e procurou meu marido em busca de notícias sobre Honestino, já desaparecido. Sem nenhuma ponte com os militares, mesmo assim, meu marido fez o que pôde, com a ajuda do dr. Barbosa Lima. Todo o esforço foi em vão. Mas a história daquele jovem ficou marcada na memória de Ulysses.

Quase dez anos depois, meu marido recebe a visita da primeira mulher eleita presidente da UNE, uma jovem muito bonita chamada Clara Araújo. Era uma comitiva grande de estudantes. Um deles cochicha com Ulysses, avisando que estava colocando no bolso do paletó um poema de Honestino Guimarães.

Sim, aquele estudante era revolucionário e poeta, uma inteligência rara, um grande líder, talvez uma das maiores lideranças daquela época. Não tivesse sido assassinado pela ditadura, Honestino teria desenvolvido uma atividade revolucionária que extrapolaria as fronteiras do país. Hoje, teria 65 anos. Não sei o que o destino lhe reservaria. A História, eu sei. Mas ela está incompleta, como está para muitos outros mortos de Ulysses.

Como eu soube de tudo isso? Nas vésperas da promulgação da Constituição, em 1988, quando meu marido se trancou em casa para escrever outra de suas célebres peças oratórias, dessa vez a definitiva. Vi Ulysses mexendo nas suas anotações antigas e amareladas, um bando de garranchos que só ele e a sua fiel secretária Terezinha Cunha sabiam decifrar.

E o nome de Honestino Guimarães estava lá, num maço, junto com o do ex-deputado Rubens Paiva, o do jornalista Vladimir Herzog e os dos operários Manoel Fiel Filho, Santos Dias da Silva e outros.

Meu marido estava passando a limpo, no modo de dizer, aqueles nomes para uma folha com outros garranchos.

Perguntei-lhe o que representava aquela lista. E meu marido:

- É o meu acerto de contas com a ditadura!

E, assim, foi feito. Logo no início do discurso; Ulysses esconjurou:

"Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina."

Fiz apenas uma ponderação:

- Não estrague a festa. Se você citar nome por nome de todos os desaparecidos, na presença dos três ministros militares, parecerá provocação. Eles até agora não engoliram aquela história dos Três Patetas (nome dado por Ulysses, durante os trabalhos da Constituinte, à Junta Militar que assumiu com a morte de Costa e Silva).

Meu marido me atendeu. E simbolizou as homenagens apenas em um nome:

"A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram."

Se eu soubesse o bafafá que isso ia dar, eu teria pedido para ele não citar nem o Rubens Paiva. Acho que eu já contei aqui que, quando Ulysses falou isso, um dos ministros militares levantou-se e foi embora.

Mas, nesse discurso, o alvo não foi apenas a ditadura. Meu marido fez também ali seus acertos políticos, principalmente quando alertou:

"A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.

Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública."

Desobediência a El Rey

"Só que Ulysses era incansável na sua implicância com Sarney, que também fazia por onde merecer"

Durante toda Constituinte, Sarney cutucava Ulysses dizendo que a Constituição tornaria o país ingovernável. E meu marido respondia que "ingovernável é fome, a miséria". Até na véspera da promulgação, Sarney provocou. E Ulysses, no discurso, exagerou:

"O inimigo mortal do homem é a miséria (...). Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria."

Essa o Sarney fica me devendo. A expressão original dizia "governo", mudei para "sociedade". Acho que, se eu não tivesse feito isso, o Sarney teria sido mais um a fugir da "comissão da verdade" do meu marido.

Só que Ulysses era incansável na sua implicância com Sarney, que também fazia por onde merecer. Sarney queria que meu marido servisse ao governo, não à sociedade. E Ulysses, então, valeu-se do rebelde João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: "Desobedecer a El Rey, para servir a El Rey".

El Rey não gostou.

PS: Candidato na primeira eleição direta do país pós-ditadura, coube ao meu marido encerrar o horário eleitoral. Foi à forra. Abriu seu pronunciamento homenageando Honestino Guimarães, citou todos os seus mortos e lembrou da "Censura velhista e velhaca, que calou para sempre a pena de Vladimir Herzog; que pisoteou e amordaçou Geraldo Vandré, Chico Buarque, Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri e Cacilda Becker, como símbolos".