Título: A cheia democrática no Nilo
Autor: Kresch, Daniela
Fonte: O Globo, 20/05/2012, O Mundo, p. 48

Herança de Mubarak e fundamentalismo islâmico se enfrentam em eleição histórica no Egito

MULHER COBERTA por véu islâmico faz campanha para Mohamed Mursi, candidato da Irmandade Muçulmana, que tem a maior bancada no Parlamento

O velho e o novo se enfrentam nesta semana nas urnas do maior e mais influente país árabe, onde antiguidade e modernidade convivem como em poucos lugares do mundo. Um ano e três meses depois da queda, após três décadas de poder, do ditador Hosni Mubarak, e em mais um passo na turbulenta e demorada transição democrática, o Egito vota na quarta e na quinta-feira para definir o futuro de um povo que rompeu a duras penas com o passado, mas ainda o vê condicionar o presente. Os principais candidatos simbolizam esse conflito interno naquela que pode ser considerada a primeira eleição presidencial real da história do país - só houve referendos com candidato único até 2005, ano em que Mubarak foi reeleito com 89% dos votos numa disputa vista como meramente protocolar. Entre os 13 candidatos, quatro - dois seculares que participaram do governo Mubarak e dois islamistas perseguidos pelo antigo regime - se destacam na linha de frente, em pesquisas eleitorais sem um claro vencedor. A disputa será travada voto a voto num pleito que será monitorado por aproximadamente 80 observadores internacionais de 35 países.

Alguns garantem que o vencedor será Ahmed Shafiq, um ex-piloto que serviu como último primeiro-ministro de Mubarak - certamente o candidato preferido pelos militares, que ainda mantêm uma forte influência sobre os destinos do país. Outros apostam no ex- chanceler e ex-secretário-geral da Liga Árabe Amr Moussa, o nome mais conhecido internacionalmente e favorito dos seculares. Eles disputam o voto dos egípcios com dois nomes de peso do campo islâmico: Mohamed Mursi, do Partido da Liberdade e da Justiça, que representa a Irmandade Muçulmana (grupo que lidera o Parlamento com 46% das cadeiras), e o islamista independente Abdel Moneim Abol Fotouh, apoiado pelos salafistas, que detêm 20% do Parlamento.

Ao que tudo indica, nenhum dos candidatos deve conseguir 50% dos votos, o que levará a disputa para um segundo turno, que ocorre nos dias 16 e 17 de junho. Se tudo acontecer como programado, o novo presidente será finalmente revelado no dia 26 de junho, e o Conselho Supremo das Forças Armadas (Scaf, na sigla em inglês) - a junta militar que assumiu o poder interinamente depois dos 18 dias de protestos na emblemática Praça Tahrir que derrubaram Mubarak - vai entregar as chaves do palácio presidencial de Heliópolis ao novo líder no dia 1º de julho. Uma das perguntas-chave é se os militares vão mesmo cumprir o prometido na esteira do levante popular ou encontrarão uma maneira de manter o poder.

- Os militares não têm opção: terão que transmitir o poder, mesmo que não gostem do resultado. Mas certamente vão continuar envolvidos em todos os assuntos do país, nos bastidores - acredita o professor Yoram Meital, especialista em Egito da Universidade Bar-Ilan, em Israel.

Temas internos dominam campanha eleitoral

Tudo é novidade na campanha eleitoral mais disputada da História do Egito. De propaganda política a debates na TV, de entrevistas com candidatos a disputas jurídicas, os egípcios se aventuram por mares nunca antes navegados no mundo árabe. No olho desse furacão político, os temas que se destacam são internos: segurança pessoal, reativação da economia e do turismo, reconstrução das instituições públicas e o papel da religião no Estado. Questões de política externa, como o relacionamento com Israel e com os Estados Unidos, estão em segundo plano, embora a comunidade internacional aguarde com apreensão para saber como o futuro presidente egípcio lidará com esses temas cruciais para a estabilidade do Oriente Médio.

- Nunca vi os egípcios falarem tão livremente, tanta proliferação de opinião, tanta falta de medo - diz Rashid Khalidi, professor de Estudos Árabes da Universidade de Columbia.

Mais de 40% dos eleitores ainda estão indecisos, segundo pesquisas cujo grau de confiabilidade ainda tem de passar pelo teste das urnas. Principalmente os da periferia do Egito, onde a Primavera Árabe não parece ter chegado. Mas, ao final do pleito, ficará mais claro se os egípcios querem romper totalmente com o passado e o legado de Mubarak, mesmo que isso signifique coroar velhos rivais do antigo governo sem nenhuma experiência administrativa. Caso vença um candidato secular, ele enfrentará oposição ferrenha do Parlamento eleito em novembro do ano passado, que conta com ampla maioria islamista. Essa oposição pode dificultar o já complicado processo de elaboração da nova Constituição do país.

Há dois anos, nenhum dos 81 milhões de habitantes sonhava em participar de eleições livres. Para todos, estava claro que Gamal, filho de Mubarak, estava sendo preparado - principalmente pela primeira-dama, Suzanne Mubarak - para "herdar o trono" do pai. Afinal, o ditador se comportava como um faraó digno das 31 dinastias que dominaram a terra do Nilo. A questão da sucessão do presidente, já velho e doente, foi o pontapé inicial dos protestos que levaram à sua queda.

- Não tivemos, até agora, uma verdadeira mudança de regime, só mudanças dentro do regime antigo acompanhadas de muito barulho nas ruas. A eleição será um divisor de águas - aposta o especialista em Forças Armadas egípcias Robert Springborg, professor da Escola Naval de Monterey, Califórnia.

Ninguém duvida, no entanto, que qualquer que seja o resultado dessas eleições, elas não vão colocar um ponto final no incerteza política que domina o Egito. Em meio à convulsão social que se seguiu à queda de Mubarak, já há quem apele para a nostalgia. O ex-ditador - que está em julgamento e espera o veredicto previsto para junho, quando acontece o provável segundo turno das eleições - ainda tem seus fãs. Recentemente, surgiu uma página no site de relacionamentos Facebook com o nome "Desculpe-nos, Sr. Presidente", que reúne 62 mil adeptos. Nela, os criadores resumem: "O senhor cometeu erros e desapontou alguns. O senhor confiou em homens sem consciência à sua volta, mas continuará no coração de todo e qualquer egípcio que o ama".