Título: Liberdade de expressão sob ataque
Autor: Bertoni, eduardo
Fonte: O Globo, 04/06/2012, Opinião, p. 7

Os países das Américas estão reunidos na assembleia geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Possivelmente poucos chefes de Estado compareceram e os chanceleres devem ficar, em sua maioria, apenas algumas horas em Cochabamba, onde ocorre o evento de dois dias, sem contar as recepções e jantares - prévios e posteriores - frequentemente organizados.

Como no passado, a AG aprovará dezenas de resoluções, que incluem mandatos aos escritórios da OEA e recomendações aos Estados, resoluções que muitas vezes se repetem durante anos e que poucas vezes têm seguimento para saber-se quais são cumpridas e quais não são. Em outras palavras, vai inciar-se outra AG que seria como as habituais se não fosse por um fato muito perigoso: a tentativa de enfraquecer de maneira grave a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e sua Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (Rele), cuja tarefa é a promoção, proteção e defesa de um direito consubstancial à democracia.

Tudo começou no ano passado. Um grupo de funcionários estatais elaborou um documento para "fortalecer" o sistema interamericano de direitos humanos. Sua redação, promovida pelo Equador, ligou uma luz de alerta porque transformaria a Rele numa oficina burocrática, sem as luzes e os brilhos dos últimos anos. Quando, no início do ano, esse documento foi discutido no Conselho Permanente da OEA, houve países, como Argentina, Canadá, Chile, Costa Rica, Panamá, Uruguai e Estados Unidos, que decididamente expressaram a importância de respeitar a independência e autonomia da CIDH e da Rele.

Mas a história seguiu e agora estamos diante de uma possibilidade de que se adote uma resolução na AG que pode significar um grave enfraquecimento da Rele. As propostas dos que seguem o Equador para "fortalecer" o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos apontam o contrário. Por exemplo, a Rele já não poderia publicar um informe anual próprio, onde são denunciadas as violações à liberdade de expressão em separado do informe da CIDH. Quer dizer, pretende-se "fortalecer" impedindo que se publique um informe que é uma prática de mais de uma década. Em lugar de pedir mais informes especiais, pede-se que um deles desapareça.

Da mesma forma, argumentou-se que se "fortaleceria" o sistema interamericano se a Rele não dispusesse dos recursos financeiros que hoje tem para dar lugar a uma distribuição equilibrada entre as outras relatorias da CIDH. Em vez de mais relatorias bem financiadas, propõe-se que a Rele, cuja eficácia já foi demonstrada, não tenha os recursos de que necessita. A Rele opera exclusivamente graças a contribuições de Estados europeus e de nosso continente, que, é de se destacar, nunca suspenderam seu apoio por estar em desacordo com o trabalho da Relatoria. E, finalmente, o orçamento operacional da Rele, em termos comparativos e tendo em conta que é um escritório que deve atender às necessidades de todo o continente, é notavelmente baixo.

Devemos estar atentos ao papel que desempenharão em Cochabamba países como Brasil, Colômbia e México. O primeiro porque, dada sua relevância global e seu passado de violações dos direitos humanos, dará uma péssima mensagem ao mundo se, na AG, se somar aos que preferem que o sistema interamericano de direitos humanos na prática desapareça. Os dois últimos porque a situação em que vivem ali os jornalistas é alarmante e justamente esses países deveriam contribuir para um genuíno fortalecimento da Rele.

Felizmente, outros países do continente mostraram estar dispostos a deter a manobra na AG. Que assim seja.

EDUARDO BERTONI é diretor do Centro de Estudos sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da Universidade