Título: Tragédia síria em dois atos
Autor: Farah, Tatiana
Fonte: O Globo, 06/06/2012, O Mundo, p. 34

Após tortura e destruição, fuga para o Brasil

Tatiana Farah

tatiana.farah@sp.oglobo.com.br

SAMIR E Ana em SP: casa do casal em Homs foi destruída por míssil e eles se refugiaram por seis dias no banheiro

GRACE KHEZAM (à direita) com a família na casa em que viviam: rebeldes colocaram bomba a dez metros do prédio

Marcos Alves

Arquivo pessoal

SÃO PAULO. Samir e Ana estavam em casa com os dois filhos quando um míssil entrou pela cozinha. A casa toda começou a ruir. Era fevereiro e o bairro de Baba Amr, em Homs, estava sendo mais uma vez bombardeado pelas forças do presidente da Síria, Bashar al-Assad. A mãe de Samir e seus irmãos correram para o que restou da casa de três andares. Todos se refugiaram no banheiro, no piso inferior. Ficaram escondidos seis dias.

- Eu menti a todos. Disse que o banheiro era seguro, que nada nos aconteceria ali. Mas era mentira - confidencia Samir, que, com a brasileira Ana, conseguiu fugir para o Brasil.

Ana e Samir são nomes fictícios. O casal não quer se identificar por temer represálias de Assad contra sua família, que continua na Síria. Também é fictício o nome de Ali, seu irmão de 28 anos, preso sem o conhecimento da família e submetido a toda espécie de tortura.

Ali foi retirado da fila de refugiados do bairro por ser considerado terrorista. O crime teria sido ajudar os vizinhos depois de um bombardeio.

- Eles me penduraram no teto por seis horas. Me davam choques. Me colocaram preso numa roda de carro, chutavam minha cabeça e chicoteavam os meus pés. Comecei a apanhar desde o primeiro dia, quando quebraram os meus óculos e vendaram os meus olhos. "Você é culpado por ajudar os rebeldes, por distribuir comida e armas", me diziam. Eu neguei, porque não era verdade.

Por 45 dias, sob choques elétricos e castigos corporais, trancafiado em solitárias de 1m x 1,5m e arrastado para cinco prisões diferentes, o único pensamento que não saía da cabeça de Ali era que gostaria de já estar morto. Até que foi libertado e se juntou a Samir e Ana na fuga para o Brasil.

- Perdemos tudo: a casa, o carro, o escritório. A gente não dormia. A gente não comia. Você não sabe o que é ver seus filhos emagrecendo, definhando. A gente bebia água, e eu dava arroz cru para as crianças - relata Ana.

Samir conta que o míssil que derrubou sua casa era recheado de parafusos para "destruir e matar tudo ao redor". Ana lembra, com revolta, que uma vizinha foi partida ao meio num desabamento. Outra vizinha foi estuprada na frente do marido.

O medo do estupro rondou todos os minutos da espera de Ana por um resgate. Ela, os filhos de 5 e 2 anos e o marido conseguiram deixar Baba Amr e fugir rumo a Damasco, onde receberam ajuda para voltar ao Brasil. Antes, Ana tentou retornar a Homs para buscar qualquer coisa que lembrasse a vida na Síria.

- Saquearam tudo. Eu trouxe um ferro de passar que não funciona e um pé de chinelo da minha filha.

A perda dos bens é só uma parte da dor da família, diz Ana.

- Minha filha não dorme mais. Eles ficaram tanto tempo sem comer que o corpo se acostumou. Eles tentavam comer e vomitavam. Vimos coisas que marcam nossas vidas para sempre. Eles matam as pessoas sem defesa.

Muçulmano, Samir tinha uma confortável vida de despachante em Homs. Ele diz que a luta na Síria não é religiosa.

- Não é uma guerra de religião. Só queremos que ele (Bashar) saia do governo. Aquelas pessoas não têm religião. O Deus deles é o Bashar. Os policiais atiravam para cima e diziam: "Estou matando Deus" - conta ele.

Agora, Samir pede que a presidente Dilma Rousseff reconsidere sua posição em relação ao governo sírio:

- Sabemos que a presidente sofreu na ditadura. Por que a ditadura dos outros o Brasil está aceitando?

Reportagem publicada no vespertino para tablet O GLOBO A MAIS

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