Título: Intervenção militar na Síria será catastrófica
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 02/06/2012, O Mundo, p. 34

MANIFESTANTES PROTESTAM contra o presidente Assad na cidade de Dael: entrada de investigadores da ONU depende do aval do regime

PINHEIRO: NOMEADO para liderar investigação sobre o massacre

Reuters

AFP/12-11-2010

À BEIRA DA GUERRA CIVIL

GENEBRA. O brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, que preside a comissão independente encarregada de investigar o massacre de Houla, na Síria, diz que sua equipe de 17 homens está pronta para embarcar. Só falta o aval do ditador sírio, Bashar al-Assad - isto é, de quem os rebeldes acusam de estar por trás da matança. Em entrevista ao GLOBO, Pinheiro faz uma defesa veemente de uma solução diplomática para a Síria, dizendo que a militarização do conflito - seja através de intervenção externa ou armando grupos rebeldes - vai levar a uma guerra civil com muito mais vítimas do que as dez mil que já morreram. "As consequências disso serão absolutamente catastróficas", prevê. E conclui: "Não há solução militar para a crise da Síria."

O GLOBO: Depois do massacre de Houla, o plano de Kofi Annan tem sentido ou utilidade?

PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Certamente, porque se não fossem os observadores, não teríamos notícias com precisão sobre as condições do massacre. Não há outro caminho a não ser fortalecer a presença dos observadores e a missão do Kofi Annan.

Annan tem tentado há três meses acabar com a violência na Síria, sem sucesso. A atual situação não lembra a impotência da ONU e da comunidade internacional diante de massacres na Bósnia e em Ruanda?

PINHEIRO: Não são situações comparáveis. A localização geo-política e o significado histórico da Síria diferem totalmente dessas situações. É preciso levar em conta que a ONU está presente na Síria, com Unicef, o Alto Comissariado para Refugiados, o Programa Mundial da Fome. No que diz respeito à presença que emana do componente político da organização, a missão de Kofi Annan é a missão validada, por unanimidade, pelo Conselho de Segurança. Não é uma negociação fácil, porque este é um conflito de uma complexidade política internacional muito maior que outros.

De que forma?

PINHEIRO: Temos uma situação de confrontos militarizados, que duram mais de um ano; temos um Estado que funciona. A Síria não é uma Líbia, e seu Exército não é como o Exército da Líbia, que era uma Armata Brancaleone (mal organizada e inútil), algo que não existia. As Forças Armadas da Síria funcionam. Houve, por outro lado, uma escalada da militarização dos grupos da oposição, que recebem apoio de atores externos. A questão é: não há solução militar para a crise na Síria. Esse projeto de treinar o Exército Livre da Síria e grupos armados é conversa para boi dormir.

Como em Ruanda, a ONU tem 300 observadores que estão observando, impotentes para para deter a violência, não?

PINHEIRO: Isso não correspondente à realidade. Nos lugares onde estão os observadores, o nível da violência tem diminuído, segundo relatos que tenho ouvido da missão de Annan. O que nos confirma o apoio à missão de Annan é que não há plano B possível. Não há possibilidade de uma intervenção militar externa na Síria. Quem diz isso não sou só eu: é o Pentágono. Evidentemente, a consequência seria uma guerra civil na Síria em que nós não teríamos dez mil mortos, mas sim 200 mil mortos. À luz de experiências passadas, o número de observadores tem que aumentar. (E deve haver) O compromisso de ambas as partes, não apenas do Exército da Síria, mas dos grupos armados e do Exército Livre da Síria, de também respeitar o fim do confronto armado. Não há solução militar para a crise na Síria.

Os EUA endureceram o discurso, acusando a Rússia de estar impedindo uma ação decisiva, sem mencionarem ação militar. As chances de intervenção aumentaram?

PINHEIRO: Não comento declarações de Estados-membros. Não creio que aumentem as possibilidades de uma intervenção militar. Não há esta vontade por parte da União Europeia nem dos Estados Unidos. Muito menos das monarquias absolutistas do Golfo e da monarquia saudita, que não estão dispostas a uma iniciativa neste sentido. Não creio que estas declarações signifiquem que estamos à beira de uma intervenção militar.

Para analistas, Assad aceitou o plano de Annan para ganhar tempo e tem sistematicamente rompido os termos do acordo. Por que insistir num plano com um ditador que todos sabem que não vai cumpri-lo?

PINHEIRO: Não é só o Estado da Síria que não respeita o acordo. Outros atores externos estão armando a oposição, não a oposição civil que se manifesta nas ruas, mas grupos armados. Isso só agrava a escalada do confronto. Creio que as possibilidades de se chegar a um acordo não estão perdidas. Prova disso é o assentimento dos governos russo e chinês, que se somaram à última declaração do Conselho de Segurança da ONU e às duas anteriores ligadas à missão da ONU e ao envio dos observadores. Temos que levar em conta não só os horrores do presente, mas os horrores do futuro, no caso de haver uma intervenção militar externa.

Como assim?

PINHEIRO: O Exército da Síria tem 300 mil homens. Só para você ter uma ideia, este é o número das Forças Armadas brasileiras, só que nós somos 200 milhões de pessoas. Tem boas baterias antiaéreas. Por várias motivações, lealdade ou retaliação, a cadeia de comando, de março do ano passado até hoje, continua absolutamente intacta. As deserções foram de brigadeiros e generais de engenharia, da administração, não de comandantes. As operações militares sírias seguem uma organização bastante precisa. Não é Líbia, não é Bósnia, não é Ruanda. É algo extremamente mais complexo. E o melhor que pode acontecer é que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU trabalhem em conjunto para se chegar a um êxito nesta negociação. A negociação é um processo dinâmico. Eu acho que a presença de observadores foi um avanço.

Acredita numa saída negociada de Assad do poder?

PINHEIRO: Não só acredito, como acho que é a única saída. A posição da comissão é que a escalada da militarização só vai levar a uma guerra civil efetiva em todo o território da Síria. E as consequências disso serão absolutamente catastróficas. Em relação a esse futuro catastrófico, tudo o que digo é o que acho melhor para a proteção das vítimas. Uma guerra civil é o que pior pode acontecer para a proteção das populações na Síria.

Já tem país se oferecendo para receber Assad?

PINHEIRO: Imagino que não vão ter dificuldade de conseguir isso.

Sobre a investigação do massacre, como vocês vão proceder?

PINHEIRO: A resolução pede o imediato acesso da comissão de inquérito. Temos um plano preparado para ir à Síria daqui a dois dias, se necessário. Temos um grupo de 17 investigadores, na sua maioria experientes, entre eles assessores militares, analistas. Um grupo que já demonstrou sua eficiência nos dois relatórios que apresentei. Temos especialistas em medicina legal e poderíamos adicionar mais recursos para a operação.

Espera um processo complicado, complexo?

PINHEIRO: É sempre complexo. Mas já contamos com algo inestimável, que foi a chegada quase imediata dos observadores das Nações Unidas. Não vamos partir do zero. E há muitos depoimentos e vídeos que circularam. Nosso trabalho fundamental será reconstituir o que ocorreu e a possibilidade de entrevistar as autoridades sírias que alegam ter acorrido para proteger a população. Não vai ser uma missão mais difícil do que outras investigações de que já participei.