Título: As vítimas falam por ti
Autor: Darci de Oliveira, Rosiska
Fonte: O Globo, 09/06/2012, Opinião, p. 6

Elie Wiesel, sobrevivente de Auschwitz, Prêmio Nobel da Paz, perguntado se falava em nome dos mortos respondeu que não. "Ninguém fala em nome dos mortos, os mortos falam por si." E acrescentou: "Resta saber se os vivos são capazes de ouvi-los." Ninguém fala em nome dos mortos, desaparecidos e torturados, vítimas da ditadura militar brasileira. Eles falarão por si mesmo agora que o Estado brasileiro finalmente se decidiu a ouvi-los.

Há quem critique a criação da Comissão da Verdade que estaria reabrindo inutilmente uma ferida. Enganam-se. A ferida existe e não há remédio para cicatrizá-la senão a memória e a verdade. Ou alguém acreditou que mortos sem sepultura se calariam?

Cada geração, atravessada pela tragédia, reencena sua Antígona, a recusa visceral de deixar insepultos os entes queridos. Uma geração foi ferida pela tragédia e precisa enterrar seus mortos, em sentido estrito e metafórico. Ao contrário do que se teme, este é o caminho da verdadeira reconciliação, ainda que seja, e é, um caminho doloroso. Se a comissão não tem o poder de punir, no sentido de processar criminalmente e condenar, as verdades que virão à tona punirão, sim, com a condenação moral.

Os atos bárbaros que foram perpetrados pela ditadura militar e para os quais seus agentes, sem assumi-los, invocam justificativas - estranho paradoxo: atos que não teriam existido são justificados - de tão vergonhosos se praticavam em porões e casas vazias. Apagavam-se os traços, silenciavam-se as vozes, abafavam-se os ecos. Inconfessáveis, eram atos fronteiriços entre o aniquilamento do opositor - mesmo quando armado apenas com argumentos - e o sadismo, entre a guerra suja e a deriva mental.

Deles há, sim, que se envergonhar. As penas que a Comissão pode infligir não estão na lei e sim na moral. Seu caminho é o inverso do seguido pela repressão: as testemunhas falarão e serão ouvidas à luz do dia, os traços reconstituídos, os resultados tornados públicos.

Os desaparecidos da vida não devem desaparecer da História e os trabalhos da Comissão talvez venham a ser a maneira mais honesta de lhes dar, enfim, uma sepultura digna. Essa é a moral da história.

Por definição, só os sobreviventes têm o dom de perdoar. Ao fazê-lo, afirmam sua irredutível diferença frente aos que negaram sua humanidade. O dom de perdoar não implica o impossível dever de esquecer. Anistia não é amnésia, sintetizou Adam Michnik, ilustre dissidente polonês. É o que repete incansavelmente o reverendo Desmond Tutu, também Prêmio Nobel da Paz, com a autoridade de quem comandou a Comissão de Verdade e Reconciliação, criada por Nelson Mandela, na África do Sul.

A liberação da memória não é um preito ao passado, é uma ponte para o futuro, o cuidado com a transmissão da herança de uma geração a outra. A rememoração atualiza o esquecido, o ocultado ou ignorado, preenchendo um vazio de compreensão sem a qual a juventude é expropriada de uma dimensão de sua vida que, embora não vivida em primeira pessoa, sofre os reflexos e consequências do que foram os gestos de seus antecessores. Como pode um jovem entender o Brasil de hoje, ouvindo dizer que a presidente da República foi torturada e passou anos na prisão, não sabendo como, quando, nem por quê, sem lucidez alguma sobre o passado e sua carga traumática?

A grande nação democrática que o Brasil está se tornando não pode comemorar apenas seus sucessos. Tem a obrigação de visitar suas zonas de sombra para que esses fatos jamais se repitam. Se formos capazes de aprender as lições do passado - tortura, nunca mais, em prisão alguma -, essa será a derrota última dos torturadores e a missão cumprida da Comissão da Verdade. Frente a isso empalidece o sentimento de revanche. A vingança é uma inspiração arcaica que não rima com o momento promissor que vive o país. O sucesso do Brasil democrático é o mais duro castigo que a história impõe a quem apostou na barbárie dos porões.

O Estado brasileiro tem que fazer o seu trabalho de memória, encarando e admitindo os crimes que cometeu, fazer seu luto, convivendo com a tristeza pelo irreparável e tentando reparar o que ainda é possível: dizendo às famílias e amigos o paradeiro dos seus.

Avessa aos ódios que, no passado, levaram alguns a ver no opositor um inimigo, no inimigo uma coisa desprezível, no limite o "sub-homem" de que fala Primo Levi, a nova sociedade brasileira poderá, então, encontrar a paz da reconciliação. Inescapáveis, verdade, luto e reconciliação são momentos fecundos na história de cada um e de uma nação.