Título: O perigo regional de uma intervenção
Autor:
Fonte: O Globo, 09/06/2012, O Mundo, p. 29

Depois de Houla, al-Qubeir. E inexoravelmente a pressão externa cresce por uma intervenção. Os apelos chegam dos líderes da oposição síria - que colocam sua causa no mesmo patamar da questão líbia - e de pessoas comuns e políticos, influenciados pelos massacres de inocentes. Os apelos são altos e fervorosos - e precisam encontrar resistência a todo custo.

O cenário é enganoso em todos os níveis, como em Houla, por exemplo. Para muitos defensores da intervenção, bastaria 108 pessoas serem mortas a sangue frio. Os relatos iniciais eram de que crianças tiveram a garganta cortada, o que aparentemente não é verdade. Todas, é dito agora, foram baleadas quando atiradores abriram fogo indiscriminadamente.

Isso é realmente ruim, mas não é a mesma coisa que cortar gargantas de crianças. Também, estritamente falando, nenhuma das vítimas era de fato opositora ao regime. Em Houla e al-Qubeir, são as milícias shabiha - do clã alauíta de Assad, mas não tropas regulares - as identificadas como responsáveis.

De várias formas, essas verdades forçam um prognóstico mais pessimista do que a versão inicialmente divulgada - por ignorância ou para fazer propaganda - pela oposição. Se o que emergiu como uma revolta popular já se manifesta em linhas religiosas e de clãs, uma saída forçada de Assad não vai resolver o problema.

Isso serviria só para abrir a tampa e permitir a entrada de oxigênio num fervente caldeirão de conflitos, como foi no Iraque. Mas isso é algo em que americanos e britânicos, com ou sem a França, deveriam se envolver? Assim como terminamos a dolorosa retirada do Iraque e como ainda estamos tentando sair do Afeganistão?

A Síria é bem mais complexa. Há muito mais sírios do que líbios; o país é mais dividido em vários aspectos; e o próprio Assad ainda tem forte apoio em mais partes do país do que a oposição admite. De fato, quanto mais a ordem se deteriora, mais os sírios olham para o regime e as milícias em busca de proteção. Mas a principal razão para que se resista a uma intervenção é externa, e não interna.

Rússia e China podem ter se posicionado contra as potências ocidentais em relação a Assad, mas essa sombra da Guerra Fria é inofensiva se comparada às chamas reais que surgem agora no Oriente Médio. A Síria já está virando um campo de batalha para uma "guerra por procuração" entre os países do Golfo e os sauditas de um lado, e o Irã do outro; entre os sunitas no poder no Sul, e os xiitas no Leste.

A violência na Síria já se espalha em direção ao Líbano, onde poder e demografia são balanceados de forma tênue. A sul e a oeste estão Israel, Gaza e territórios palestinos ocupados. A leste, o ainda instável Iraque.

Se a violência na Síria aumentar, com ou sem Assad, e houver intervenção externa, será praticamente impossível restringir a revolta às fronteiras do país. É hipócrita por parte do Ocidente pedir uma ação na Síria e culpar a Rússia; uma Rússia condescendente só exporia a impotência ocidental. A realidade é dúbia. Na Europa, a atual crise do euro pode parecer uma ameaça ao mundo como nós conhecemos. Mas não é nada, absolutamente nada, se comparada ao que pode acontecer se a Síria explodir.