Título: Rastros de carnificina em aldeia
Autor:
Fonte: O Globo, 09/06/2012, O Mundo, p. 29

UM HOMEM carrega uma menina ferida numa explosão no bairro de Qudsaya, em Damasco: capital síria viveu dia de combates pesados, contam testemunhas

AFP

O silêncio e a paisagem idílica nos arredores de al-Qubeir, uma zona rural nos arredores da cidade síria de Hama, escondem uma história de tragédia que os 20 observadores da ONU tentarão reconstruir nos próximos dias. Superadas as ameaças e o bloqueio de mais de 24 horas imposto pelas forças de segurança da Síria, um comboio de monitores internacionais finalmente chegou ontem à aldeia onde ativistas garantem ter havido um massacre de ao menos 78 pessoas. Poucos apareceram com testemunhos com um mínimo de credibilidade sobre o acontecido em al-Qubeir. Entre muita destruição, nenhum corpo foi encontrado. Os indícios de uma matança, porém, eram claros. E enquanto a missão das Nações Unidas investiga o caso, coube ao jornalista Paul Danahar, da rede britânica BBC, revelar detalhes chocantes do que viu no pequeno vilarejo de cerca de 20 casas e uma população que não ultrapassa os 150 habitantes. Todos muçulmanos sunitas.

"Descemos por um vale e seguimos em direção a poucas construções baixas. Uma parece ter um buraco causado por um foguete (...). Estamos aqui. Na frente de um prédio queimado, há a carcaça de um burro. O interior dos edifícios está destruído. A ONU não encontrou ninguém ainda (...). Na minha frente há um pedaço de cérebro, no canto existe uma massa de sangue coagulado. Esta é uma casa em al-Qubeir. A maior das duas casas no alto do monte foi consumida pelas chamas. O cheiro de carne humana queimada ainda é forte", escreveu Danahar, em sua conta no Twitter.

Sob a ameaça de milícias, relatos são conflituosos

O jornalista britânico foi um dos poucos a acompanhar o trabalho dos capacetes azuis e classificou o cenário como "apavorante".

- Você pode ver que um crime terrível aconteceu. Foi tudo queimado, as casas destruídas. As cenas mais perturbadoras foram os pedaços de cérebro no chão, uma toalha de mesa coberta de sangue e carne. Alguém tentou esconder o sangue, varrendo-o para o canto, mas parece que desistiram dada a enorme quantidade espalhada por todo lado - relatou.

Ele contou, ainda, que alguns poucos moradores de vilarejos vizinhos, que se aproximaram dos visitantes, acusaram milicianos pró-regime - alauítas como o presidente e conhecidos como shabiha - pela matança. Sobreviventes teriam sido alertados pelos aliados de Bashar al-Assad a manter a lei do silêncio e não cooperar com as Nações Unidas. Os corpos das vítimas teriam sido levados por seus algozes em caminhonetes. Muitos relatos, porém, pareciam contraditórios ou mesmo sem sentido.

- Levamos (os observadores) às valas onde enterramos os corpos, mostramos as casas queimadas e as marcas de sangue - assegurou um morador ao "Washington Post".

Caberá aos observadores da ONU fazer as investigações. E montar o quebra-cabeças.

- Pudemos sentir o cheiro dos cadáveres e ver partes de corpos ao redor da vila - confirmou a porta voz da ONU Sausan Ghosheh, ao retornar a Damasco. - A informação coletada foi um pouco conflituosa. Temos de voltar, cruzar os dados que ouvimos, checar os nomes dos possíveis mortos e desaparecidos.

A missão a al-Qubeir, aliás, ocorreu num dia de violência generalizada. E de relatos preocupados da Cruz Vermelha Internacional, segundo os quais, o número de deslocados internos do conflito vem crescendo rapidamente. A organização informou ter conseguido prestar alguma assistência a apenas 400 mil dos cerca de 1,5 milhão de civis carentes de ajuda humanitária.

Se no exterior as informações transformavam-se em indignação, na Síria viraram apreensão. Testemunhas contam que Damasco registrou ontem os mais intensos confrontos entre opositores e forças pró-Assad. Um carro-bomba explodiu, matando ao menos sete pessoas. Homs e Deraa também foram bombardeadas pelo Exército. O número de mortos no país, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos, chegou a 47.

A secretária de Estado americana, Hillary Clinton, reuniu-se com o enviado especial da ONU e da Liga Árabe, Kofi Annan, para debater a crise. "Pressão" foi a palavra-chave do encontro.

- Alguns dizem que o plano de paz estaria morto. O problema é o plano ou sua implementação? Se for a implementação, como voltar ao caminho certo? E se for o plano, que outras opções temos? - questionou Annan.

Em Brasília, o Itamaraty informou, em nota, ver com "crescente preocupação" a escalada da violência. O governo brasileiro pediu ainda que o governo sírio coopere com a missão da ONU.

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