Título: Doha bilhões do petróleo para futuro verde
Autor: Tabak, Flávio
Fonte: O Globo, 07/06/2012, Economia, p. 26

Um dos maiores produtores do combustível no mundo, Qatar usa recursos da energia poluente em projetos sustentáveis

Flávio Tabak

flavio.tabak@oglobo.com.br

Enviado especial

ARRANHA-CÉUS em Doha construídos no deserto com o dinheiro do petróleo do Qatar, país escolhido para sediar a Copa de 2022 e a convenção do Clima COP-18 no fim do ano

USINAS DE dessalinização da água do Golfo Pérsico: reservas duram dois dias

O PROJETO do bairro sustentável que está sendo contruído no centro de Doha

Fotos de Flávio Tabak

Divulgação

RUMO A UMA CIDADE SUSTENTÁVEL

DOHA. O Qatar vive um paradoxo. Investe bilhões de dólares em tecnologias de desenvolvimento sustentável enquanto explora uma das maiores reservas de gás e petróleo do mundo, com altas taxas de emissão de CO2. A prosperidade que financia pesquisas para o uso de energias renováveis - centralizadas na capital Doha - vem da extração, e futura queima, de energia fóssil.

Como não há fonte natural de água no país e a produção de alimentos é residual, o Qatar precisa investir pesado, hoje, para chegar ao futuro como um dos protagonistas da energia limpa, principalmente solar. Mais do que um surto ecológico, está em jogo a sobrevivência da população. O emir do Qatar, xeque Hamad bin Khalifa al-Thani, virá ao Rio com delegação de cem pessoas para apresentar propostas de mudar radicalmente o país escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2022 e a Convenção do Clima COP-18 no fim do ano.

A experiência de Doha encerra a série de reportagens "Cidades Sustentáveis", publicada desde o domingo passado pelo GLOBO.

O Qatar depende hoje da energia de origem fóssil para abastecer usinas de dessalinização de água, processo caro e vital para os país. Os dois aquíferos da península de 11,4 mil quilômetros quadrados - meio Sergipe - secaram. Restou a água do Golfo Pérsico, sugada diariamente por usinas que tratam, remineralizam e oferecem o combustível humano que mantém a população de 1,7 milhão de pessoas - só 250 mil são qatarianos - viva e bem hidratada no clima desértico. No verão, as temperaturas passam de 50 graus. As reservas de água duram apenas dois dias, segundo o governo. Uma situação limite que vem sendo enfrentada pelo país com o maior PIB per capita do mundo (US$ 98,3 mil), segundo relatório divulgado pela revista "Forbes" em fevereiro.

Energia e alimentos terão

US$ 300 milhões

Fahad bin Mohammed Al-Attiya é presidente do Qatar National Food Security Programme (QNFSP), órgão do governo criado para deixar o país seguro no abastecimento de água e de alimentos. O QNFSP vai gastar US$ 300 milhões na elaboração de cerca de 600 projetos de irrigação, agricultura, armazenamento de água, entre outros. A ideia é mudar um número inimaginável no Brasil: 90% dos alimentos consumidos no Qatar são importados. Al-Attiya admite que há uma situação paradoxal, mas diz que é impossível acreditar numa repentina mudança da infraestrutura do mundo para usar logo energias renováveis.

- O mundo não vai se livrar da energia fóssil tão cedo. No Brasil, estão descobrindo mais e mais. Toda infraestrutura global, do Japão ao Chile, foi feita para a segunda revolução industrial, não para a terceira. O paradoxo vai continuar. A construção de cidades do futuro não pode ser com princípios do século passado. Às vezes ainda fazem isso, e esse é o desastre. No Qatar, não temos muitas resistências internas. Aqui o nosso sistema ajuda a implementar novas tecnologias. O processo de decisão é mais rápido. É simples assim - resume Al-Attiya, em referência ao governo centralizado no xeque, que dispensa partidos políticos, mas financia a rede internacional de TV Al Jazeera, sediada em Doha.

É com essa simplicidade que Al-Attiya pretende entregar, em 2014, todos os projetos que deverão sair do papel dali a dez anos, em 2024. Depois de gastos os US$ 300 milhões, outros muitos bilhões - Al-Attiya prefere não revelar - serão usados nas obras. Além do QNFSP, outros órgãos do governo ou ligados a ele investem em projetos para o país sobreviver num futuro próximo. São US$ 3,5 bilhões por ano (2,8% do PIB) em pesquisas e desenvolvimento desde 2008.

Divulgado em maio, um estudo da WWF e de outras instituições põe o Qatar no topo da lista dos países que mais consomem recursos do meio ambiente. Representantes do governo respondem dizendo que os cálculos são sempre feitos a partir da divisão das emissões de CO2 pela população, que, no Qatar, é muito pequena. Diretor-executivo do Qeeri (órgão de pesquisa de energia e meio ambiente da Qatar Foundation), Rabi H. Mohtar afirma, no entanto, que o discurso do país precisa ser proativo.

- Acredito que 60% da dessalinização do mundo são feitos aqui. Nossa mensagem é a de que estamos tentando reduzir a emissão de carbono. O Qatar não foge da responsabilidade .

Uma das principais missões do governo é produzir energia renovável para gerar água de consumo doméstico e na agricultura. A ideia é o país virar num centro de distribuição de alimentos no Oriente Médio. A região sul, com maior radiação solar, receberá campos de captação desse tipo de energia. As novas fazendas que estão nos planos do xeque serão criadas para ter o mínimo da força de trabalho humana e alta produtividade. As empresas terão incentivos financeiros.

A água é um artigo tão raro no Qatar que, quando a agricultura do país for uma realidade - hoje representa 0,2% do PIB - o país não exportará alimentos para evitar vender a água usada no cultivo de um tomate, por exemplo. Haverá todo um plano ferroviário para escoar a produção. Os cidadãos terão extensa rede de transporte público, pelos planos do governo, até a Copa de 2022. E os estádios serão interligados por estações de metrô.

Os planos do xeque e de seu filho, o xeque Tamim bin Hamad Al Thani, vão além da construção de reservas de água e da irrigação do país. A sustentabilidade qatariana passa pelo tipo de alimentação dos que vivem no país. Dados oficiais mostram que 69% dos homens e 78% das mulheres têm sobrepeso ou são obesos. Por isso, o QNFSP vai promover campanhas sobre dietas mais balanceadas. Os qatarianos vêm escolhendo alimentos de baixa qualidade, como congelados e embutidos, já que os produtos são importados.

Professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, José Goldemberg diz que a corrida para um futuro sem petróleo, em 30 ou 40 anos, está em curso:

- O Qatar pretende, assim como outros países da região, desenvolver tecnologias para ficar na vanguarda. Vão ser a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) de energias renováveis. Estão se preparando para competir bem no futuro. A Petrobras tem mais marketing do que iniciativas reais. No Oriente Médio, levam mais a sério porque têm mais dinheiro.

Petroleiras pesquisam

sobre energia renovável

O Qatar, que mantém estreitas parcerias com os EUA, financia também um parque científico e tecnológico (QSTP, na sigla em inglês) onde recebe petroleiras internacionais para desenvolver pesquisas sobre energia renovável e redução do impacto ambiental na extração de petróleo. Só a americana Chevron gasta US$ 20 milhões em trabalhos com energia solar. A dinamarquesa Maersk Oil, que extrai 300 mil barris de petróleo por dia no Qatar, captura e armazena o gás poluente emitido a partir da extração de óleo numa plataforma.

Para Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, o país atua estrategicamente:

- A energia limpa vai demorar muito para ter peso grande na matriz energética mundial. O Qatar tem vantagem porque o mundo tem descoberto muito gás natural, que antes precisava ser transportado em tubos, mas, com a tecnologia da liquefação, pode ser exportado por navio. E o Qatar tem uma das maiores plantas de liquefação de gás do mundo. Apesar de ser fóssil, o gás é mais limpo e faz a transição entre as matrizes de energia.