Título: O interesse da sociedade
Autor: Thiago Bottino,
Fonte: O Globo, 19/06/2012, Opinião, p. 7

O procurador regional da República Manoel Pastana pediu a abertura de Inquérito para averiguar o suposto crime de lavagem de dinheiro pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Afirma que um advogado não pode defender nem receber honorários de Carlinhos Cachoeira, pois “Cachoeira não teria renda lícita para Justificar legalmente pagamento de honorários de. advogado famoso”.

Lavagem de dinheiro é dar aparência lícita para dinheiro obtido de forma ilícita. Um criminoso que utiliza o dinheiro ilicitamente obtido não pratica lavagem. E muito menos quem recebe esse dinheiro. Se fosse assim, nenhum médico poderia tratar de Cachoeira ou nenhum restaurante poderia lhe servir comida desde o dia em que os jornais noticiaram a suspeita dos seus crimes, sem que ele apresentasse sua declaração de imposto de renda. Isso, claro, se tivéssemos certeza de que todo o patrimônio de Cachoeira seja decorrente exclusivamente de atividades ilícitas.

Mas é outra passagem da petição que causa espanto. O procurador escreveu: “Não é ético nem moral alguém com potencial e alcance criminal desse jaez ser assistido por defensor que teve, pelo menos em tese, missão de, como ministro da Justiça, defender o Estado Brasileiro da ação deletéria de infratores perniciosos para à democracia (...).” Trata-se de fato da extrema gravidade porque demonstra o desconhecimento sobre a junção do advogado criminal dentro do próprio Ministério Público.

Ao longo da história, vários profissionais foram hostilizados pelas defesas que aceitaram. O falecido Antonio Evaristo de Moraes Filho, um dos maiores criminalistas do país, destacou dois episódios: o advogado Labori, que defendeu Alfred Dreyfuss, foi baleado; Yoram Schefel, que perdeu 90 parentes no Holocausto e aceitou defender Ivan Demjanjuk (Ivan, o Terrível de Treblinka), teve ácido jogado em seu rosto. O ódio da população não compreendia a importância da defesa.

Em 1911, Antonio Evaristo de Moraes (outro expoente da advocacia criminal) escreveu a Rui Barbosa indagando se deveria aceitar a defesa de um acusado considerado pela imprensa como “indigno de defesa”. Rui escreveu-lhe uma resposta, que ficou conhecida como “O dever do advogado”, na qual afirma que o advogado não defende o crime, mas é a voz dos direitos legais do criminoso. E que essa voz não deve emudecer mesmo quando a população se revolte contra o crime ou o criminoso. Ao final, afirma que Evaristo não só pôde como deve assumir essa defesa.

Da mesma forma, o Estatuto da OAB determina que, “nenhum receio de desagradar a magistratura ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”.

Poucos teriam a coragem de se colocar na defesa do “odiado nacional” da vez. E poucos teriam a estatura moral e a experiência profissional capazes de, nesse caso, representar, efetivamente, uma chance de defesa que reequilibre o processo penal. Processo penal sem defesa não é processo, é linchamento.

Ao aceitar o encargo de trabalhar na defesa de qualquer acusado — por mais banal ou hediondo, obscuro ou midiático que seja o crime imputado —, o advogado criminal assume a defesa da sociedade, do devido processo legal e do estado de direito, impedindo que os princípios de humanidade e racionalidade, tão caros à democracia, sejam abandonados em favor da sofreguidão pública pela punição imediata. A defesa de Cachoeira é interesse da sociedade. É o direito de qualquer cidadão de ser defendido quando, por culpa ou pelas “teias da fatalidade”, se vir acusado em um processo criminal.

THIAGO BOTTINO é professor de Direito Penal da FGV-Direito, do Rio.