Título: Lugo por um fio
Autor: Oliveira , Eliane
Fonte: O Globo, 22/06/2012, O Mundo, p. 28

O Congresso paraguaio abriu ontem um processo de impeachment contra o presidente Fernando Lugo, numa iniciativa relâmpago prevista na Constituição, mas denunciada como um golpe branco por seus partidários. A crise já mobiliza a diplomacia regional e levou à convocação de uma reunião de emergência da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), que enviou uma missão de ministros, liderada pelo chanceler Antonio Patriota, para tentar contorná-la. Aprovado quase por unanimidade (apenas um voto contra) pela Câmara dos Deputados, o projeto está nas mãos do Senado, onde a oposição tem poder para passá-lo com facilidade na votação marcada para hoje.

Lugo está isolado no Congresso. Entre acusações de nepotismo, má gestão das Forças Armadas e de ser brando no combate à violência, perdeu o apoio do Partido Liberal, o principal da coalizão que o levou ao poder há quatro anos. O estopim, argumentam a oposição e seus antigos aliados, foi o confronto da semana passada durante a desocupação de uma propriedade, perto da fronteira com o Brasil, que terminou com 17 mortos - seis deles policiais. Em discurso à nação e em conversa por telefone com a presidente Dilma Rousseff, ele garantiu que não vai renunciar, mas que respeitará a decisão do Congresso.

- Este presidente anuncia que não vai renunciar ao cargo e se submete, com absoluta obediência à Constituição e às leis, a enfrentar um julgamento político com todas as consequências - afirmou, no discurso, o primeiro presidente de esquerda do Paraguai após seis décadas de governo conservador. - O povo não esquecerá que se pretende interromper um processo democrático histórico a apenas nove meses das eleições gerais, frustrando o que de mais significativo a democracia tem.

A oposição alega estar agindo dentro da Constituição e cita como argumento o artigo 225, que afirma que o presidente pode ser submetido a um julgamento político no Congresso "por mau desempenho de suas funções". Se as previsões se concretizarem e o impeachment for aprovado, Lugo seria substituído justamente por um de seus maiores críticos, o antigo aliado e atual vice-presidente, Federico Franco.

Bloco cogita isolar país regionalmente

Como ficou estabelecido ontem no Senado, o presidente paraguaio terá apenas duas horas para se defender, e uma decisão final deverá ser anunciada até o fim da tarde. Na Câmara, o impeachment foi aprovado por 76 votos a favor e apenas um, da única deputada do partido de Lugo, contra. A Constituição diz que o processo deve durar até três dias, mas a velocidade e a forma súbita com que o processo se deu ontem surpreenderam os partidários do ex-bispo, que denunciaram uma manobra ilegal.

- Nunca vimos um julgamento político com tempos tão acelerados como este em toda a História da América Latina - disse ao GLOBO Rubén Penayo, que integra a equipe de assessores de Lugo. - Pode ser considerado uma espécie de golpe de Estado.

Elevando o clima de tensão, dezenas de movimentos pró-Lugo se dirigiram de várias partes do país para a capital. Mais de mil policiais foram deslocados de outras cidades para reforçar a segurança. Nos arredores do Congresso, que corre para aprovar o impeachment antes que protestos populares ganhem força, um princípio de confronto levou a polícia a estabelecer barreiras. Temendo a violência, comerciantes fecharam as portas em Assunção, e bispos pediram pessoalmente a Lugo que renunciasse.

Um dos objetivos da missão de chanceleres - estabelecida em reunião na Rio+20 e que será chefiada também pelo secretário-geral da Unasul, o venezuelano Ali Rodríguez - será avaliar se há um golpe de Estado em curso. No governo brasileiro, há fortes dúvidas sobre se a votação ocorreu de forma democrática. Se a missão concluir que houve golpe, a Unasul vai invocar imediatamente o Protocolo de Ushuaia, que isola quem rompe com a democracia. Nesse caso, o país perde o acesso a financiamentos e tratados comerciais.

Ainda sem uma opinião formada, o Planalto e o Itamaraty estranharam a rapidez do Legislativo paraguaio. Dilma recebeu um apelo por telefone de Lugo, que foi ouvido em viva-voz por alguns dos presidentes sul-americanos presentes, como o equatoriano Rafael Correa e o boliviano Evo Morales.

- É um golpe de Estado contra um presidente democraticamente eleito, um atentado contra os governos que impulsionam profundas transformações de maneira pacífica em seus países - disse Morales no Riocentro.

Em tom mais brando que o de Morales, Patriota leu, ao fim da reunião, uma nota da Unasul na qual os presidentes expressam "a convicção de que se deve preservar a estabilidade e o pleno respeito à ordem democrática do Paraguai".

"Os presidentes consideram que os países da Unasul conquistaram com muito esforço a democracia e, neste sentido, nós todos devemos ser defensores extremados da integridade democrática na América do Sul", afirma o texto.

Sem base política, a força de Lugo agora está nos movimentos populares, sobretudo no campo - uma de suas principais promessas de campanha, que acabou esbarrando no impasse político, foi redistribuir terras. Entre os brasiguaios, brasileiros que há décadas disputam a propriedade de terras no Paraguai, o clima era de tensão.

- Estamos nervosos. Qualquer mudança no governo pode dar uma reviravolta nas questões da terra, que sempre são muito tensas - disse, por telefone, o pecuarista brasileiro Fernando Alonso, de 36 anos, que vive na região do Alto Paraná.