Título: Dez anos sem cachê para as estrelas da festa
Autor: Miranda, André
Fonte: O Globo, 06/07/2012, Rio, p. 27

PÚBLICO aguarda a mesa "Apenas literatura", ontem: não pagamento dos convidados começa a ser discutido pelo setor e dentro da própria Flip

André Teixeira

PARATY. Há muitas atividades em torno da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), mas a principal, a razão que traz milhares de pessoas à cidade do Sul Fluminense, são as mesas que reúnem autores brasileiros e estrangeiros renomados. Sem eles não haveria Flip. No entanto, nunca um convidado da festa recebeu cachê pela participação, em nenhuma das dez edições. A explicação costuma ser a contrapartida da vitrine para seus livros no mais importante festival literário do Brasil. Porém, hoje, com eventos semelhantes país afora pagando cachês, muitos deles nascidos sob inspiração da Flip, essa opção começa a ser debatida pelo setor e por integrantes da própria organização da festa e pode sofrer mudanças.

A Flip surgiu em 2003, buscando um modelo semelhante ao do inglês Hay Festival, um dos maiores eventos literários do mundo, que paga aos autores em casos específicos (ao lado, Peter Florence, diretor do Hay Festival, escreve sobre o tema com exclusividade para O GLOBO). Hoje, a festa cobra R$ 40 pelo ingresso na Tenda dos Autores (com as principais mesas) e R$ 10 na Tenda do Telão (onde os debates são transmitidos ao vivo). Seu orçamento para a edição de 2012 é de R$ 8,4 milhões. O assunto, porém, não é unânime entre os organizadores, sobretudo em relação aos mediadores. Pela necessidade de uma preparação prolongada, é provável que, já na edição de 2013, os mediadores passem a ser remunerados.

Organizador argumenta que Flip não tem fins lucrativos

Responsável pela organização da Flip, o presidente da Fundação Casa Azul, Mauro Munhoz, preferiu se limitar a comentar o assunto em nota por escrito:

"Prezamos muito a presença de cada escritor e mediador que aceita o convite para estar na festa. Não queremos entrar num mercado de cachês criando categorias de preço por autor. O fundamental é que os convidados sintam que a participação na festa valeu a pena, e para que isso aconteça fazemos de tudo para que todos tenham a melhor experiência possível em Paraty. Diferentemente de outros eventos comerciais, a Flip é uma iniciativa sem fins lucrativos, e todo o produto da venda de ingressos é reinvestido na produção do evento e na manutenção dos projetos educativos e de desenvolvimento local que se mantêm ao longo do ano em Paraty".

Por essa posição, escritores já recusaram o convite. O cartunista americano Art Spiegelman foi convidado diversas vezes, mas nunca esteve na Flip - em 2007, ele chegou a confirmar participação, depois cancelada. Só que Sipegelman veio ao Brasil em maio, para o quarto Congresso Internacional Cult de Jornalismo Cultural, e teria recebido entre R$ 15 mil e R$ 20 mil por uma palestra - o ingresso custava R$ 800, para 42 horas de eventos.

- Quando fui curador da Flip, apenas um convidado perguntou por cachê. Expliquei que nosso modelo era diferente, e a pessoa acabou aceitando - conta Cassiano Elek Machado, curador da festa em 2007, e escalado mediador da mesa "O mundo de Shakespeare", hoje, às 12h. - Sabia que não seria pago e aceitei, pelo tratamento especial que a Flip dá aos convidados. O pagamento vem de outro modo. Mas, de forma geral, acho a remuneração importante. É um trabalho, para o qual é preciso preparo.

Organizadora do Fórum das Letras de Ouro Preto, promovido pela Universidade Federal de Ouro Preto, Guiomar de Grammont diz que, desde a segunda edição do evento, uma parte "significativa" do orçamento, de R$ 500 mil, é destinada aos cachês de autores - ela não especifica quanto - e mediadores, que ganham R$ 1 mil cada.

- Sempre achei necessário pagar cachê, mesmo simbólico. Muitas vezes o argumento para não pagar é o de que o evento oferece um retorno em divulgação muito mais valioso. Mas a opção pelo pagamento me parece mais respeitosa. O trabalho do escritor deve ser valorizado como qualquer outro - diz Guiomar, que reconhece, porém, a dificuldade em definir parâmetros para os valores. - Acredito que todos devem receber o mesmo, autores nacionais e estrangeiros, iniciantes e consagrados.

Guiomar aponta como modelo viável o adotado pela Feira do Livro de Porto Alegre, que oferece cachês a todos os autores, mas paga mais aos de fora da cidade, pelos gastos de locomoção.

Um dos eventos literários mais tradicionais do país, realizado há mais de 20 anos, a Bienal do Livro do Rio não paga a escritores e mediadores. A Fagga Eventos, que organiza a Bienal com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, aposta em atrair os convidados pela visibilidade da feira (em 2011, foram mais de 600 mil visitantes em 11 dias), cujo orçamento da programação cultural é de R$ 4,2 milhões (o total ultrapassa R$ 20 milhões). Em bienais similares pelo país, como as de Minas, Bahia e Amazonas - cada uma tem R$ 800 mil para a programação -, a Fagga paga R$ 1 mil a cada convidado.

- A Bienal do Rio é uma grande vitrine. Para as outras cidades, além de pagar as despesas, oferecemos um cachê simbólico - diz a superintendente de comunicação da Fagga, Dil Melo.

Na Bienal de Brasília, cachês entre R$ 5 mil e R$ 12 mil

A primeira Bienal Brasil do Livro e da Leitura, realizada em abril deste ano em Brasília, ofereceu cachês a autores e mediadores - em média, R$ 5 mil para os brasileiros e U$ 6 mil (cerca de R$ 12 mil) para os estrangeiros, diz o curador da programação literária, o diretor da Geração Editorial Luiz Fernando Emediato. Com orçamento de R$ 6 milhões bancado em grande parte pelo governo do Distrito Federal, a bienal recebeu convidados de peso, como o nigeriano Wole Soyinka, Nobel de Literatura em 1986, o argentino Juan Gelman e o brasileiro Milton Hatoum. Todas as palestras foram gratuitas.

- Intelectuais vivem do seu trabalho. Como escritor e editor, considero um desrespeito convidar alguém para uma mesa num evento desse porte e não pagar - diz Emediato.

Em geral, entre os autores nacionais o tema é discutido nas entrelinhas, sem estardalhaço, uma prática comum às questões mais espinhosas do mercado editorial. Mas houve casos de brasileiros que disseram não à Flip devido à falta de cachê. O mesmo já ocorreu em outros eventos: em 2011, na Bienal da Bahia, Affonso Romano de Sant'Anna escreveu uma carta aberta à Fagga, afirmando que "escritor não tem que trabalhar de graça". Hoje, outros concordam e reverberam a ideia.

- A organização da Flip deveria se esforçar para pagar os autores. A maioria dos festivais do Brasil está pagando. São dias em que você não está fazendo seu trabalho principal, que é escrever - diz a escritora Tatiana Salem Levy, convidada da Flip de 2009. - Mas as pessoas não deixam de vir porque a Flip é a maior festa do Brasil e um local ótimo para divulgar um livro.