Título: Dia tomado por emoção, risadas e aplausos
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Fonte: O Globo, 09/07/2012, Rio, p. 14

Conversas marcadas pela emoção fecharam ontem a décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty. Todas as mesas do dia foram muito aplaudidas, pontuadas por depoimentos comoventes e engraçados: Jackie Kay disse que a poesia era uma cidade chamada Paraty; Carlito Azevedo causou comoção com uma leitura visceral de um poema em homenagem a Carlos Drummond de Andrade; e as risadas deram o tom das conversas descontraídas de Rubens Figueiredo e Francisco Dantas e dos sarcásticos Gary Shteyngart e Hanif Kureishi.

Pela manhã, a Tenda dos Autores se transformou em um enorme divã, tendo a plateia como privilegiados psicanalistas. Na mesa "Vida em verso", a escocesa Jackie Kay e o gaúcho Fabrício Carpinejar, mediados por João Paulo Cuenca, falaram com franqueza sobre como suas vidas influenciam diretamente sua poesia - da infância à morte, passando pelo orgasmo.

Jackie Kay diz que poesia é um lugar chamado Paraty

Jackie ganhou a plateia ao contar que, quando seu filho era criança, acreditava que a poesia era um lugar para onde a mãe viajava. E ela, ao chegar à cidade, descobriu que ele estava certo e que a poesia realmente era um lugar e se chamava Paraty. O público foi ao delírio. Em seguida, Jackie leu poemas como "Darling" ("Querida", em tradução livre), dedicado a uma amiga falecida.

Já Carpinejar repassou eletricamente a forma como sua infância marca sua obra, também transformada pela paternidade precoce. Com bom humor, o escritor gaúcho revelou que sofria bullying na infância por ser feio, mas que o sofrimento lhe abriu novas possibilidades:

- Não saía para o recreio, ficava na sala conversando com a minha merendeira. Mas o feio é obrigado a seguir outro caminho, conhece melhor a cidade. As pessoas me exploravam, elas faziam piada de mim. Por que não eu mesmo fazer isso?

Também emocionada foi a mesa "Drummond: o poeta brasileiro", um encontro entre o homenageado desta edição da Flip e os poetas Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz e Armando Freitas Filho (este em vídeo) . Cada um deu um depoimento sobre sua relação pessoal com o poeta, seguido de leitura de poemas. Aplaudida de pé por longos minutos, num dos momentos mais marcantes desta Flip, a mesa estourou em meia hora o tempo limite, e mesmo assim se encerrou quase à força pelas portas da tenda que se abriam.

O ponto alto foi quando Azevedo leu um poema escrito especialmente para a ocasião. O poeta parecia em transe, lendo em espasmos versos como: "Querido príncipe, às vezes sua ausência é tão grande por aqui que me agarro a ela como uma lebre a uma serpente".

A conferência teve início com a exibição do trecho de um documentário sobre os 50 anos do poeta Armando Freitas Filho, de Walter Carvalho. Nele, Filho fala da sua paixão por Drummond por meio de imagens poéticas, como: "Ele escrevia como quem faz a barba a seco"; "ele parecia um beija-flor eternamente no ar"; e "ele era o lado B do disco".

Antes da homenagem a Drummond, as autoproclamadas timidez e falta de jeito de Francisco Dantas e Rubens Figueiredo deram o tom - em geral engraçado - da mesa "A imaginação engajada", com mediação de João Cezar de Castro Rocha. Ex-professor universitário, Dantas, de 70 anos, lança em Paraty dois livros: uma nova edição de "Os desvalidos" e o mais recente "Caderno de ruminações" (ambos da Alfaguara). Começou quase pedindo desculpas pela falta de jeito, pois, como um "tímido e bisonho caipira", nunca se habituou ao microfone. No fim das contas, ele se saiu muito melhor do que fazia crer, arrancando risadas constantes da plateia.

As risadas continuaram na mesa "Entre fronteiras", com os escritores Gary Shteyngart, russo naturalizado americano, e Hanif Kureishi, inglês filho de paquistaneses - que participa pela segunda vez da festa -, e boa mediação de Ángel Gurria-Quintana. Temas como imigração, humor, tecnologia e gêneros literários embalaram a descontraída conversa, encerrada com muitos aplausos. Shteyngart começou a apresentação com uma leitura em tom performático de um trecho de seu último romance, "Uma história de amor real e supertriste" (Rocco).

- Quando comecei a pesquisar para o livro, em 2006, sequer tinha um iPhone. Então comprei um aparelho celular e contratei um jovem alto e bonito para me ajudar a mexer naquilo. Foi muito divertido, mas teve um lado ruim. Depois que comprei o telefone, parei de ler livros. Acho que faz cinco anos que não leio um. Queria voltar a ser como antes - brincou.

No fim do dia, na tradicional mesa "Livro de cabeceira", nove dos autores convidados leram trechos de obras marcantes em suas vidas. Os mais aplaudidos foram Luis Fernando Verissimo - o único brasileiro do grupo -, que leu "Imaginação", de Millôr Fernandes, morto este ano; e o catalão Enrique Vila-Matas, que repetiu o mesmo texto lido há seis anos na Flip, "Ao volante do chevrolet pela estrada de Sintra", de Fernando Pessoa. E, já em clima saudoso, o espanhol Javier Cercas, que leu um trecho do clássico "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes, aproveitou sua fala para "reclamar" que o evento só tinha um problema: durava cinco dias, em vez de 30.