Título: De olhos abertos para a Cuba atual
Autor: Miranda, André
Fonte: O Globo, 07/07/2012, Rio, p. 26

O GLOBO: Em suas obras ou entrevistas, a literatura sempre se aproxima da política, e de certa forma confunde-se com sua própria história de vida. O quão relacionadas estão vida, literatura e política para você?

ZOÉ VALDÉS: "O nada cotidiano" e o "O todo cotidiano" têm elementos autobiográficos, mas a personagem não sou eu. Melhor: eu sou todos os personagens, inclusive os masculinos. São romances. Essas histórias se passam em Cuba têm, claro, um contexto da ditadura castrista que já dura 53 anos e viola os direitos humanos. Você não pode escrever sobre Cuba e não contar o que está se passando. Seria como visitar um lugar de olhos tapados.

Mas a literatura surgiu como consequência ou causa de sua posição política?

VALDÉS: Eu comecei escrevendo poesia aos 11 anos de idade, num diário em que falava sobre o círculo familiar e a escola. Esse diário segue comigo até hoje, continuo escrevendo poesia. Depois escrevi roteiros para o cinema, romances e ensaios. Essa é minha obra, mas tendo a desenvolver, como escritora e como ser humano, um pensamento de defesa dos direitos humanos, e da justiça, da liberdade e da democracia. Quando um escritor escreve alguma coisa, ele dá sua opinião política. Fizeram isso Sartre, Camus e tantos outros.

Quando você optou por sair de Cuba...

VALDÉS: Não foi uma opção minha. Saí de Cuba em 1995 para apresentar um romance na Europa e fiz declarações à imprensa como estou fazendo agora a você. Aí apareceu um representante da embaixada castrista, dizendo que se eu continuasse falando com a imprensa, eles não me deixariam mais entrar em Cuba. E eles me fecharam a porta. Eles.

E como a senhora lida com esse exílio forçado?

VALDÉS: Graças a meu exílio, eu pude ler muitos livros proibidos em Cuba, de grandes historiadores cubanos, como Leví Marrero. Há livros sobre histórias muito duras, durante o castrismo, de fuzilamento e prisões. Conheci uma personalidade como Mario Chanes, que ficou 36 anos no cárcere, bem mais que Nelson Mandela. O filho de Chanes nasceu, viveu e morreu enquanto o pai estava no cárcere.

Mesmo vivendo longe há mais de 15 anos, a senhora se sente completamente cubana?

VALDÉS: Sou muito cubana. Mas também sou universal. Os cubanos, antes de Castro, eram universais, como foram José Martí ou José Lezama Lima. Martí foi um grande patriota que morreu na guerra e viveu toda sua vida no exílio. Ele morreu com 44 anos e escreveu 26 volumes, entre eles o grande texto "Nossa América". Lezama Lima era um cubano que se autodenominava o peregrino imóvel. Acredito nessa universalidade.

Muitos desses heróis cubanos que a senhora cita foram sendo substituídos pelos heróis do atual regime, Fidel Castro e Che Guevara. Os heróis mudaram?

VALDÉS: Castro e Guevara não são os heróis cubanos de hoje. Para mim, os heróis de hoje são Sonia Garro Alfonso e seu marido Ramón Alejandro Munhoz, ambos presos desde março. Sua filha de 16 anos está só na casa da tia. Não podemos confundir Castro com Cuba.

A senhora sonha voltar a Cuba?

VALDÉS: Muito. Sonho que caminho por uma rua de Paris e, quando viro em outra rua, aparece Havana. Aí procuro o nome da rua, mas acordo do sonho.

E a senhora acredita que o governo de Castro está chegando ao fim?

VALDÉS: É urgente que haja mudanças. Mas, agora mesmo, Raúl Castro foi à China, cantou alguns hinos maoístas, e lhe prometeram ajuda. Enquanto houver ajuda de Chávez, da China e do Irã, Cuba ainda vai dar muito trabalho. Esta ditadura, a ponto de morrer, tem herdeiros, com apoio dos EUA. O governo americano quer evitar que uma massa de cubanos entre lá assim que o regime cair.

Seus próximos trabalhos ainda vão abordar esses temas?

VALDÉS: Tenho um romance muito complexo, pelo qual serei muito atacada, sobre um ditador, Fulgencio Batista. Foi o primeiro mulato presidente de Cuba, que começou do nada, e o único da América Latina que declarou guerra a Hitler. Mas, depois de 1952, cometeu o erro grandíssimo de dar um golpe e destruir a Constituição.

Então será uma defesa histórica de Fulgencio Batista?

VALDÉS: Não vou defendê-lo. O romance será sobre um ditador. Sobre um presidente amado pelo povo que virou ditador.