Título: Impasses da democracia e da religião no Oriente
Autor: Freitas, Guilherme
Fonte: O Globo, 07/07/2012, Rio, p. 27

PARATY. Ambos autores de origem árabe radicados há décadas em Paris, o sírio Adonis e o franco-libanês Amin Maalouf fizeram na mesa "Literatura e liberdade", realizada na tarde de ontem na Tenda dos Autores, um debate amplo sobre os conflitos vividos hoje pelas sociedades árabes e os impasses históricos entre Ocidente e Oriente. Alternando-se entre o "otimismo inquieto" defendido por Maalouf e a veemência de Adonis contra a opressão religiosa no Islã e a ingerência dos Estados Unidos na região, a conversa, mediada pela jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho, apontou a literatura como um espaço possível de diálogo e resistência.

A mesa começou com uma leitura de versos de Adonis pelo arabista Michel Sleiman, tradutor da coletânea "Poemas" (Companhia das Letras), primeira edição brasileira daquele que é considerado o maior nome da poesia árabe moderna. Em seguida, o próprio Adonis, de 82 anos, recitou um poema, sem tradução, dando ao público uma amostra dos sons e cadências do idioma. Maalouf leu um trecho do ensaio "O mundo em desajuste" (Editora Difel), em que recorda sua passagem pela Romênia no fim da ditadura de Nicolau Ceausescu, em 1989, quando viu num muro o grafite: "Ceausescu, não há lugar para você na Europa".

- Então há lugar para ditadores em outra parte? - perguntou-se Maalouf. - Se acreditamos que a Humanidade é uma só, precisamos defender a universalidade dos direitos humanos para a Europa, a África, o Oriente Médio, e todo o mundo.

A combinação de arte e política, estabelecida já nesse início, deu o tom da conversa entre os dois autores. Adonis disse acreditar que há uma oposição irredutível entre religião e poesia - a primeira é responsável pela "monotonia e o monoteísmo" da cultura islâmica, provocou, e a segunda pode representar um caminho de liberdade e contestação dentro dessa cultura.

- O Islã é fundado na ideia de que as palavras de um profeta, pronunciadas há séculos, são a verdade última e incontestável. Por isso, o Islã, quando acredita avançar, está indo para o passado. A literatura, para ser uma força criadora, tem que questionar, tem que transgredir - afirmou Adonis, apontando a tradição de poetas místicos árabes, que combatiam as religiões e as convenções sociais, como uma fonte de inspiração possível para artistas de hoje.

Apoiador de primeira hora dos protestos por democracia da Primavera Árabe, que se espalharam pela região desde o ano passado, Adonis disse que a esperança que sentiu num primeiro momento com as manifestações está se enfraquecendo com o desenrolar dos eventos em países como o Egito, a Tunísia e sua Síria natal:

- A Primavera Árabe foi a primeira vez que os jovens tomaram as rédeas da situação, sobretudo as mulheres. Mas, com o tempo, esses setores foram sendo marginalizados, e os fascismos militares do mundo árabe estão sendo substituídos por fascismos religiosos - criticou Adonis, que apontou o tratamento dado às mulheres nas sociedades islâmicas como um índice de seu autoritarismo. - Em sociedades medievais como as árabes, onde a mulher parece não existir, a revolução passa pela laicização total e pela liberação total da mulher. Não adianta mudar os regimes se as sociedades não mudarem.

Maalouf defendeu posição mais moderada sobre o Islã

Maalouf, de 63 anos, se mostrou menos cético em relação à Primavera Árabe, apesar de desaprovar o termo ("já passamos por muitas estações desde o início dos protestos", disse). Mas considerou uma grande evolução o fato de que, nos últimos meses, diversos países da região estão se familiarizando com "o hábito das eleições, o hábito de votar".

- É preciso acostumar os líderes políticos ao jogo democrático, e isso agora é mais possível no mundo árabe. Lembremos que, embora a Revolução Francesa tenha começado em 1789, a República francesa só se estabilizou depois de nove décadas de turbulências e conflitos. A atitude dos jovens árabes de tomar a palavra é algo a partir do qual podemos construir algo novo - espera Maalouf, que opôs um olhar mais moderado à visão pessimista de Adonis sobre o Islã. - Houve momentos da História em que o Islã promoveu o diálogo entre culturas e contribuiu para o desenvolvimento das artes e do pensamento inclusive no Ocidente.