Título: No interior do Amazonas, nenhum estudante para trás
Autor: Gois, Antônio
Fonte: O Globo, 08/07/2012, O País, p. 3

EURINEPÉ (AM) . Na Escola Estadual Dom Bosco, em Eurinepé, a 1.200 quilômetros de Manaus, a fase de matrícula oferece aos professores a possibilidade de um diagnóstico precoce. É nesse momento que começa o "drama do dedão". Quando um pai, constrangido, oferece a impressão digital no lugar da assinatura, o colégio já sabe que aquela criança precisará de atenção especial. Se for preciso, o trabalho ultrapassa a sala de aula e vai até a casa do aluno, para blindá-lo dos efeitos perversos no aprendizado de uma família cujo chefe não sabe ler ou escrever.

Esse trabalho diferenciado, que individualiza o aluno sem afetar o coletivo, tornou a Dom Bosco um fenômeno educacional e orgulho do Amazonas. A escola obteve o maior aumento no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), saindo de pífios 2,7 em 2005 para 8.7 em 2009. Da aposta no reforço escolar à disciplina em sala, passando pela oferta de duas merendas ao dia, são várias as explicações para o bom resultado. De todas elas, contudo, o maior destaque é para o envolvimento da família do aluno no aprendizado.

- Até 2015, queremos erradicar completamente o dedão de nossas pastas - diz a coordenadora Maria de Fátima Libânio da Silva.

Fátima se refere ao projeto de alfabetização de pais de alunos, temporariamente suspenso, mas que a escola pretende reativar como um projeto estratégico para se manter no grupo de elite do Ideb. Não será fácil. Uma das oito escolas estaduais de Eirunepé, a Dom Bosco, com 330 alunos, dos quais 80% recebem Bolsa Família, é uma ilha de excelência no bairro Santo Antônio, um dos mais carentes da cidade. O analfabetismo dos adultos não chega a ser o pior dos problemas do local, onde palafitas se projetam sobre valões infestados de insetos e outras pragas que fazem morada no esgoto a céu aberto.

A arquitetura da Dom Bosco, que oferece do fundamental à quinta série (crianças de seis aos 12 anos), não tem nada de especial. Alugado pela Igreja Católica ao governo do estado, o prédio de alvenaria e madeira, de um pavimento, lembra os alojamentos ocupados pelos desbravadores do passado na Amazônia. Mas as salas de aula são amplas, arejadas e coloridas por desenhos, brinquedos educativos e outras peças didáticas. O ponto alto, porém, é o amplo terreno em torno da construção. Ocupa um quarteirão inteiro, a maior parte gramada e pontuada por árvores frondosas.

A diferença entre o ambiente externo e a escola acaba contribuindo para o sucesso de outra das estratégias de ensino da escola: o reforço escolar. A presença dos alunos vai além do horário oficial. Quem estuda no turno da manhã, encerrado às 11h30m, não chega a tirar o uniforme quando almoça em casa. Às 14 horas, a maioria já está de volta à Dom Bosco, com a mesma disposição, para aulas direcionadas às dificuldades específicas, só interrompidas pela segunda merenda do dia.

Jorge Pedrosa de Oliveira, de 8 anos, só tem tempo para assistir "Os vingadores" na TV, antes de retornar para o reforço. Enquanto vê o desenho predileto, devora um prato de peixe, baião de dois e farinha. A mãe, Alcenir Pedrosa Fialho, de 39 anos, recebe os forasteiros com desconfiança. Sua palafita, de sala e quarto, denuncia o estado de penúria da família. A última visita de estranhos tinha sido do Conselho Tutelar, no ano passado, alertado pela direção da escola devido ao número elevado de faltas de Jorge.

- Jorge, com dores na barriga, começou a faltar. Um dia, descobri que ele tinha uma ferida infeccionada na barriga, causada pelo tombo de uma árvore. Os médicos chegaram a retirar um pedaço de madeira de seu corpo - disse a coordenadora.

Fátima colocou o menino na garupa da moto e foi até sua casa, onde constatou que a mãe, alcoólatra, levara sete facadas. O pai era ausente, e o dinheiro do Bolsa Família, praticamente gasto com o vício no "corote", nome local da cachaça. Acionado, o Conselho Tutelar ajudou a escola a monitorar a família. Hoje, já em casa e livre do álcool, Alcenir se reaproximou do ex-companheiro e passou a dar mais atenção aos três filhos - além de Jorge, tem uma menina adotiva e um filho adolescente com dificuldades mentais.

Em tese, o reforço é dado em sala pelos próprios professores, mas o espaço é insuficiente, e as aulas acabam acontecendo debaixo das árvores, algumas vezes oferecidas por auxiliares administrativos e até mesmo por alunos. Virna Faustino de Barros, de 12 anos, é uma das alunas voluntárias. Filha de um casal de professores, a ex-aluna do Dom Bosco conta como ajudava os colegas nas aulas de reforço:

- Sempre escolhemos os que têm mais dificuldades, geralmente bagunceiros.

Fundada pelos padres em 1982, a Dom Bosco não foi sempre assim. A escola, em 2005, chegou ao fundo do poço com uma das piores avaliações do estado, 2.7 no Ideb. A coordenadora regional de Educação de Eurinepé, Suely Pinheiro Neblina, convocou na época uma reunião:

- Os professores ficaram revoltados, com raiva de mim. Mas saí feliz de ver a revolta deles. Sabia que algo acabaria acontecendo.

Os resultados não demoraram. Hoje, um quadro exposto na entrada do colégio mostra outro motivo de orgulho. Em 2010, a Dom Bosco obteve 0% de reprovação e abandono.