Título: Perigo ao volante
Autor: Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 08/07/2012, O Mundo, p. 37

Suor frio, temor de deportação e do fim do sonho americano. Para 11,5 milhões de imigrantes que vivem em situação irregular nos EUA, o gesto do guarda de trânsito pedindo os documentos tem o peso de uma sentença e o risco de confisco daquela que é a prova de identidade e a permissão para viver no país do automóvel: a carteira de motorista. Atualmente, apenas dois estados - Novo México e Washington - concedem o documento a imigrantes sem visto de permanência. Na maré oposta, sobe sem trégua o número de estados que aprovam leis autorizando a polícia a exigir provas do status legal: Arizona, Alabama, Indiana, Geórgia, Carolina do Sul, Utah.

O brasileiro Anderson Gomes de Oliveira vai ganhar no dia 15 de agosto, quando completará 34 anos, um presente de grego: a expiração de sua carteira de motorista, expedida no longínquo estado de Washington, na Costa Oeste. Morador de Nova Jersey há 11 anos, Anderson passou por um susto na semana passada: levou uma multa de US$ 200 e foi advertido de que precisa transferir sua licença para o estado onde reside. Se for pego de novo em seis meses, perde a habilitação e a capacidade de continuar tocando sua empresa de construção.

- Você fica pedindo a Deus para eles não te pararem. A carteira de motorista é minha vida aqui, dependo dela para tudo - disse Oliveira.

Nos EUA, o país com a maior frota de carros do mundo - uma média de 2,28 automóveis por domicílio -, dirigir é uma necessidade para milhões de pessoas que não encontram transporte coletivo a contento. Além disso, não existe uma carteira de identidade como a do Brasil e de muitos outros países. No cotidiano, a carteira de motorista é o documento que se usa para tudo, desde embarcar em um voo doméstico até abrir uma conta ou comprovar identidade para um pagamento.

- A carteira de motorista é a segunda coisa mais desejada pelos imigrantes, atrás apenas da legalização de seu status migratório. É também uma ferramenta de integração na sociedade, especialmente nos EUA, onde historicamente ela é o documento de identidade mais usado - afirma Ben Winograd, advogado do American Immigration Council, uma ONG que promove os direitos de imigrantes há 25 anos.

Drible na lei custa caro a brasileiro

O mexicano Roberto Sánchez vive no Novo México desde 1997. Sánchez, hoje com 38 anos, tornou-se dependente do carro. Morador de Santa Fé, onde o intervalo entre dois ônibus pode levar uma hora, ele leva as ferramentas de operário da construção civil no carro e se indigna ao ver o cerco apertando até nesse estado, um dos dois últimos a conceder carteira de motorista a um imigrante ilegal, como ele. Segundo Sánchez, a cada renovação, são exigidos mais papéis e mais visitas ao equivalente local do Detran. A governadora do Novo México, a republicana Susana Martinez, tenta há anos aprovar uma lei semelhante às dos outros 48 estados.

- Querem nos tornar mais vulneráveis para nos explorar, nos pisotear. Eles precisam da nossa mão de obra. Com documentos, ninguém aceitaria trabalhar por US$ 5 a hora. Mas, na situação atual, as pessoas aceitam até US$ 3 a hora - disse Sánchez.

Segundo dados do Pew Hispanic Center, 80% dos imigrantes ilegais são de origem hispânica. Estima-se que 4,5 milhões sejam motoristas, boa parte deles sem carteira ou com habilitação vencida.

A guerra política está longe do fim, na opinião de Marcela Díaz, diretora-executiva da ONG Somos Un Pueblo Unido, uma das líderes do movimento de resistência à mudança na legislação no Novo México, que conta com mais de 50 organizações.

- Esse tipo de lei é feita para estimular o que os conservadores chamam de "autodeportação". São leis que provocam divisão na sociedade, mas que podem ser muito eficazes para um certo tipo de político - disse Marcela.

O professor Marcelo Suárez-Orozco, diretor do centro de estudos de Imigração da NYU (New York University), diz que a crescente restrição à concessão da carteira de motorista é parte da "tempestade perfeita" que se abate sobre os imigrantes nos Estados Unidos.

- Não é possível trabalhar nem ter família nos EUA sem o acesso aos documentos mais básicos. Em muitos estados, o carro é apêndice da pessoa. Essas leis têm o objetivo de fazer a vida das pessoas tão difícil que elas desistam - afirma.

Para Anderson Oliveira, a volta ao Brasil passou a ser uma possibilidade concreta. Para renovar a carteira, ele precisaria voltar a Washington e pagar pelo menos US$ 1.500 a um coiote, um agente ilegal que lhe forneceria comprovantes falsos de residência para a renovação da carteira.

- Estou cansado das mentiras, do fingimento. Pago meus impostos, pago uma fortuna de seguro por cinco carros. Estou desanimado - desabafa.

Mesmo quem viveu mais de uma década sem sobressaltos pode descobrir que uma barreira legal tem o potencial de tornar o cotidiano inviável. O sul-africano Tim Smulian, morador de Long Island (Nova York), se viu, depois de 13 anos de vida em comum com o americano Edwin Blesch, diante de uma encruzilhada burocrática. Embora casado legalmente há cinco anos, ele não tinha direito ao visto de permanência que seria garantido a um cônjuge heterossexual. E precisava da carteira de habilitação, porque o companheiro ficou sem poder dirigir, devido a problemas de saúde.

- A razão pela qual a questão se tornou crítica é que precisava levá-lo a um hospital que está a três horas de distância - disse Smulian, que contratou um advogado para solucionar o emaranhado, obtendo a alteração de seu status legal que lhe permitirá ter o documento.

Para Suárez-Orozco, a maré anti-imigração não dá sinais de arrefecimento.

- Os americanos vivem um mal-estar, uma vertigem ao pensar no futuro, em um país que está deixando de ser branco e anglo-saxão, que está em crise econômica, que tem um presidente negro, filho de um imigrante do Quênia - disse o especialista em imigração.