Título: Muito mais que aviões de caça
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 12/09/2009, Mundo, p. 29

A atual política externa identifica na Europa o contraponto ideal para a hegemonia dos Estados Unidos no hemisfério americano

Inevitável que as atenções iniciais se debrucem sobre os valores envolvidos no programa de modernização e reequipamento das Forças Armadas brasileiras: já são cerca de 8 bilhões de euros abocanhados pela França com o fornecimento e desenvolvimento de submarinos e helicópteros. Há mais 5 bilhões, pelo menos, reservados para os 36 caças que a FAB receberá nos próximos anos. Sem falar nas receitas imediatas e nos empregos que as encomendas representam, transações desse vulto e desse alcance costumam puxar mais negócios no médio e longo prazo, por si ¿ ainda que não se sucedam outras compras e concorrências, o que parece pouco provável.

Como se fosse pouco o dinheiro movimentado, as opções feitas agora e nos próximos anos têm também implicações políticas e estratégicas de dimensão comparável, talvez até maior. Parcerias desse porte no terreno da defesa estabelecem entre os países, a começar pelo estamento militar, laços que transcendem governos e marcam eras. No caso brasileiro, basta lembrar a posição que ocuparam França e Reino Unido, na primeira metade do século 20, e os Estados Unidos, no pós-Segunda Guerra, até o governo Geisel (1974-1979). Agora, é a mesma França que retoma o protagonismo, graças à tacada bilionária concluída pelo presidente Lula com Nicolas Sarkozy, no âmbito de uma parceria estratégica que já vinha sendo alimentada com Jacques Chirac.

São muitas as variáveis da equação que o Planalto e a Defesa estão montando, em presumível interface com o Itamaraty. Uma delas, à qual a coluna tem ouvido menções recorrentes por parte de diplomatas europeus, é justamente a definição de alinhamentos de fôlego e envergadura para a ordem geopolítica global do pós-Guerra Fria ¿ um desenho cujos traçados ainda não são definitivos. Múltiplos sinais indicam que o Brasil está ingressando em um novo círculo, ampliado, onde as grandes decisões serão tomadas. E, a julgar pelo rumo que os movimentos mais recentes indicam, a atual política externa identifica na Europa o contraponto ideal para a posição hegemônica que os Estados Unidos continuarão ocupando, no futuro visível, no hemisfério americano.

Vale examinar, nesse contexto, o marco das relações estabelecidas com quatro pesos pesados do Velho Continente:

França

Logo nos primeiros meses de mandato, Lula construiu notáveis afinidades com Jacques Chirac, tanto na oposição à guerra do Iraque quanto no lançamento do Fome Zero mundial. O aprofundamento das relações com Nicolas Sarkozy, outro representante da direita francesa clássica, caracteriza uma aproximação na base de Estado para Estado, por cima das identidades políticas ¿ que, no caso, seriam naturalmente mais sólidas entre o PT e o Partido Socialista.

Espanha

O presidente do governo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, é atualmente um dos dirigentes europeus com quem Lula encontra coincidências políticas mais numerosas e profundas. O diálogo político fluido se expressa em temas como o combate à pobreza e a aproximação diplomática com o mundo árabe e muçulmano. No embalo da troca de visitas e nos repetidos encontros, fluem também os negócios: os espanhóis vêm com força disputar sua fatia no PAC.

Reino Unido

Pode restar pouco tempo ao trabalhista Gordon Brown na casa de número 10 da Downing Street, residência oficial do primeiro-ministro. Mas o establishment político britânico fechou questão com o Brasil em um tema chave da agenda global: o meio ambiente. Reservadamente, um funcionário de Londres resumiu nesses termos a percepção de Brown sobre o encontro de Copenhague sobre as mudanças climáticas, em dezembro: ¿Para onde o Brasil sinalizar, a balança penderá¿.

Alemanha

Nos primeiros três anos de Lula, as relações com o governo de coalizão entre social-democratas e verdes foram de vento em popa, empurradas pelas coincidências em torno do Iraque e pela opção comum em favor das energias renováveis. O romance esfriou com a ascensão da chanceler (chefe de governo) Angela Merkel, democrata cristã, que no fim do mês pode sair das urnas à frente de uma aliança mais à direita ¿ mais simpática à indústria nuclear do que aos biocombustíveis.