Título: Exumação tardia
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Fonte: O Globo, 05/07/2012, O Mundo, p. 32

Oito anos atrás, a morte misteriosa num hospital de Paris suscitou rumores de um câncer no estômago, Aids, infecções, assassinato pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, entre teorias conspiratórias.Mas a causa da morte do líder palestino Yasser Arafat, aos 75 anos, em outubro de 2004 limitou-se a um informe vago, nunca explicada oficialmente. Somente ontem uma atônita Autoridade Nacional Palestina (ANP) deu o sinal verde para a exumação dos restos mortais de Arafat, enterrado em um mausoléu na Muqata, o complexo presidencial, em Ramallah.

A autorização reforçou o apelo feito por Suha, a viúva de Arafat - à época contrária ao procedimento. Foi a mudança de opinião dela que permitiu uma investigação da TV al-Jazeera, segundo a qual uma quantidade inusitada de resíduos de polônio-210 aparece nos pertences do líder palestino. E reacende as suspeitas de que ele teria sido assassinado por envenenamento.

O presidente Mahmoud Abbas ordenou, ainda, a abertura de uma investigação para apurar as causas da morte de Arafat com a ajuda de peritos árabes e estrangeiros. E anunciou que pedirá ao Conselho de Segurança da ONU a abertura de uma investigação internacional nos mesmos moldes da aberta no Líbano para apurar as circunstâncias do assassinato do ex-premier Rafiq Hariri. A exumação do corpo poderá ocorrer já nos próximos dias - dependendo apenas da formalização de uma autorização familiar e de trâmites burocráticos e religiosos.

- Não há razão alguma política ou religiosa que nos impeça de investigar este caso, incluindo a exumação do corpo dele por uma autoridade médica e científica confiável - assegurou o porta-voz de Abbas, Nabil Abu Rudeinah.

As conclusões apresentadas pela al-Jazeera são resultado de exames feitos durante nove meses pelo Instituto de Radiação Física de Lausanne, na Suíça. Os resultados foram surpreendentes. Utensílios como roupas, a escova de dentes, o chapéu usado por Arafat nos últimos dias e até mesmo em sua kaffiyah , o tradicional lenço palestino que usava, apresentavam índices altos de polônio-210 - ainda que o elemento tenha, segundo pesquisadores, uma meia-vida útil de 138 dias. Ou seja, ao menos metade da substância perde a força em um período de quatro meses e meio.

Viúva chega ao centro da polêmica

Figura controversa e criticada na sociedade palestina, acusada de uma vida fútil e corrupta, Suha, a viúva de Arafat, cooperou com a investigação e cedeu o material para análise.

- Chegamos a esta muito dolorosa conclusão, mas pelo menos isso tira um grande peso de mim, do meu peito. Pelo menos, fiz algo para explicar ao povo palestino e para toda uma geração de árabes e muçulmanos que não foi uma morte natural, mas um crime - disse Suha à al-Jazeera.

Para muitos palestinos, a conclusão reforça teses que se arrastam há anos.

- A suspeita de que ele foi morto, deliberadamente assassinado sempre esteve lá. A maioria dos palestinos acredita nisso. Eu acredito porque estive lá, porque o vi, presenciei a transformação - disse a ex-ministra Hanan Ashrawi, membro da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

A saída de cena do ex-guerrilheiro elevado à liderança política palestina é marcada pelo mistério antes mesmo da doença que o acometeu em 2004. Com arquivos médicos mantidos em sigilo, pouco se sabe sobre o real estado dele em seus últimos anos. Arafat viveu recluso, sob prisão domiciliar imposta por Israel desde 2002, fase mais sangrenta da Segunda Intifada, quando atentados palestinos e duras ações militares israelenses eram quase diárias.

Por três anos, não saiu da Muqata, o quartel-general da ANP. Em 25 de outubro de 2004, médicos informaram o que seria uma "gripe" quando o então presidente palestino passou mal durante uma reunião. Mas seu estado se deteriorou rapidamente. Abatido e debilitado, em 29 de outubro, foi transferido de helicóptero para o hospital militar de Percy, em Paris, onde morreu apenas 13 dias depois.

Os registros do hospital também foram mantidos em segredo, mas um documento de 500 páginas, vazado à imprensa, apontava que o líder palestino morrera de causas naturais, após uma sequência do que seria um acidente vascular cerebral antecedido por uma infecção e uma hemorragia.

Mesmo se confirmada a morte por envenenamento, restaria, ainda, saber quem matou Arafat. Israel, o suspeito natural, sempre negou qualquer envolvimento. Ontem, o chefe do Shin Bet, o serviço de inteligência israelense, à época, Avi Dichter, garantiu que o ônus da prova cabe aos palestinos. Questionado sobre a hipótese de um envenenamento da comida de Arafat, ele recorreu à ironia.

- Você me pergunta como o cozinheiro dele? - riu. - Estávamos focados em coisas mais sérias. A comida dele não nos interessava, mas àqueles ao redor dele. Arafat tinha inimigos em casa e no exterior; vamos deixar que os palestinos investiguem.