Título: Grupos armados já têm mais poder de fogo
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 27/06/2012, O Mundo, p. 27

Investigador brasileiro da ONU diz, porém, que rebeldes são desconectados e não conseguirão derrubar regime sírio

Correspondente na Europa

GENEBRA . O conflito na Síria está "tomando ares de uma guerra de insurreição", assinala o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, horas depois de desembarcar de sua primeira viagem a Damasco para conversas com o regime de Bashar al-Assad. Presidente da comissão internacional independente que investiga o massacre de Houla, em maio, no qual morreram mais de cem pessoas - mais da metade mulheres e crianças - Pinheiro divulga hoje na ONU seu primeiro relatório sobre a chacina.

O GLOBO: Qual o motivo da ida à Síria? O senhor se encontrou com Assad?

PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Não encontrei com Assad. Conversei com o vice-ministro das Relações Exteriores, com o vice-ministro da Justiça e com o presidente da comissão especial do governo para investigar crimes ligados à repressão. Basicamente fui lá para tentar demonstrar como seria feita nossa investigação sobre o massacre de Houla. Estive também com famílias de Homs e de Damasco que tiveram parentes mortos por bomba ou arma de fogo porque são leais ao governo. Foi bastante convincente. Não me pareceram pessoas preparadas para fazer um cineminha (em prol do governo).

Vítimas dos rebeldes?

PINHEIRO: De grupos armados da oposição. Hoje, os grupos armados não somente se envolvem em atos sectários, atacando outras comunidades, mas também em pequenos atos de vingança e represália. Isso é uma ocorrência preocupante.

A violação de direitos humanos é grave dos dois lados?

PINHEIRO: Claro que não há equivalência, porque o Estado tem uma responsabilidade primária na defesa dos direitos humanos. Mas ocorre que grupos armados, hoje estimados em cem, ganharam nova capacidade de fogo, pelas armas que estão recebendo e pelos recursos para comprar munições. A situação de terreno do conflito se agravou muito. O governo ampliou bastante sua ação. Há alegações de que helicópteros estão sendo utilizados para atirar.

Quais as chances de uma investigação independente do massacre de Houla?

PINHEIRO: A cena do crime foi totalmente desfeita. Mas seria importante voltar e conversar com sobreviventes.

O governo impôs condições?

PINHEIRO: Falei longamente. O governo ouviu, não se pronunciou. Vai examinar. Ainda não temos autorização.

Não há o risco de as testemunhas serem perseguidas?

PINHEIRO: Praticamente, das duas famílias massacradas, só sobrou um garoto de 11 anos. Não há testemunhas. No relatório, reconstituímos as etapas preparatórias, os checkpoints do Exército, a localização dos grupos armados. Temos uma visão boa de como ocorreu.

E os responsáveis?

PINHEIRO: Trabalhamos com três cenários. Um, o mais provável, é o de que o governo tem uma responsabilidade por ter bombardeado e causado um bom número de mortes. Não se exclui a possibilidade de que alguns grupos armados tenham se aproveitado da situação. E em terceiro, há o que chamamos provisoriamente de grupos armados externos.

De outros países?

PINHEIRO: De organizações.

Do Irã?

PINHEIRO: Não dissemos de onde porque não sabemos. São grupos com experiência nessas práticas que estão entrando no conflito.

Terroristas como a al-Qaeda?

PINHEIRO: Não usamos esta palavra. São grupos armados desconhecidos.

Desde o último relatório, piorou muito a situação?

PINHEIRO: Nosso relatório hoje diz que o conflito está tomando ares de uma guerra de insurreição. Grupos armados usam novas táticas, inclusive de guerrilha, conseguindo controlar alguns territórios, e são capazes de infligir alguns danos às forças do governo.

E os civis?

PINHEIRO: Quem paga o preço é a população civil. Dos estimados 13 mil mortos desde março, diria que mais de 80% são homens, mulheres e crianças que não estavam combatendo.

A Síria está caminhando para uma guerra civil?

PINHEIRO: Nossa posição hoje é que em algumas cidades e regiões, como Homs ou em volta de Damasco, há uma situação que eu chamaria de conflito não internacional armado, que poderia ser caracterizado como guerra civil. Mas não corresponde à realidade achar que isso ocorre em todo o país. Nem o governo nem os grupos armados têm condições de levar esta ofensiva por todo o país.

Há risco de novos massacres?

PINHEIRO: Durante todo o ano houve massacres. A polarização do conflito; a competição entre os países que apoiam os grupos armados e, de outro (lado), aqueles alinhados na defesa do regime; a guerra midiática. Neste momento de grande tensão, há também manipulações de imagens no YouTube. Houve um mito de que a garganta das crianças foram cortadas. Ninguém conseguiu ter evidência de que isso ocorreu.

Qual a grande novidade do relatório a ser divulgado hoje?

PINHEIRO: Além de uma boa descrição de como se desenvolveu o massacre, vamos fazer um alerta sobre o agravamento do conflito. Há uma espécie de insurreição, e a coisa está muito alastrada por todo o país. Antes, estava localizada. Eles (os grupos armados) não se comunicavam. Hoje têm melhor comunicação e devem estar recebendo ajuda, porque a performance deles melhorou bastante.

E qual o risco?

PINHEIRO: É uma ilusão& Aqueles que estão apostando em aumentar as armas, treinar, não vão derrotar o governo. É conversa para boi dormir. O resultado desse investimento no aumento da capacidade dos grupos armados é a continuação da violência e o aumento do número de mortes nas comunidades.

Por que eles não conseguiriam derrubar o regime?

PINHEIRO: Porque não dá para transformar cem grupos armados razoavelmente desconectados num Estado organizado. A Síria não é a Líbia. Tem Forças Armadas tão numerosas quanto as brasileiras, só que nós temos uma população dez vezes maior. Isso já dá uma ideia de como o confronto é desigual.