Título: Sombra sobre o círculo de Assad
Autor:
Fonte: O Globo, 28/06/2012, O Mundo, p. 27

Rebeldes atribuem ataque a TV pró-regime sírio a desertores da fiel Guarda Republicana

DAMASCO

OS DESTROÇOS do prédio que abrigava a emissora de TV al-Ikhbariya, nos arredores de Damasco: entre as sete vítimas do ataque, três eram jornalistas. Dezenas de funcionários ficaram feridos, segundo a imprensa estatal

AFP/Sana

O ataque não foi o mais letal; deixou sete mortos e destruiu alguns edifícios em Drousha, 20 quilômetros ao Sul de Damasco. Mas a troca de acusações que se seguiu aos disparos e às explosões que atingiram a rede de TV al-Ikhbariya, uma emissora a cabo privada e pró-governo, despertou suspeitas de uma fissura fatal em um dos pilares do regime de Bashar al-Assad: a Guarda Republicana. O governo atribuiu, como sempre, o atentado a terroristas armados. Mas a oposição contra-atacou. E além de alegar inocência, jogou uma sombra de dúvidas sobre a lealdade das altas esferas militares de Damasco ao garantir que a ação foi obra de desertores - os primeiros - da fiel e seleta Guarda Republicana, controlada por Maher al-Assad, irmão de Bashar.

Apenas um dia depois de Assad admitir que o país está em guerra, a ofensiva contra a TV também reforça a escalada de ações opositoras cada vez maiores e mais organizadas nos arredores da capital. E pode, ainda, ser um reflexo do número crescente de deserções de oficiais de alta patente que buscam refúgio na Turquia. Ontem, segundo a rede al-Jazeera, 30 militares sírios teriam conseguido chegar ao país vizinho.

- Plantaram explosivos na sede da al-Ikhbaria após saques e depredação do canal via satélite, incluindo os estúdios e a redação totalmente destruída - afirmou o novo ministro sírio da Informação, Omran al-Zoubi, que classificou o episódio como "um massacre contra a imprensa e a liberdade de expressão".

Brasileiro denuncia escalada sectária

Três jornalistas estão entre os mortos na emissora, e vários funcionários ficaram feridos no ataque, ocorrido por volta de 4h (hora local). Um funcionário contou ter sido sequestrado junto com os guardas que faziam a segurança dos prédios, tendo sido libertado pouco tempo depois:

- Fiquei apavorado quando me vendaram e me levaram.

Houve confrontos também nas províncias de Idlib e Deir el-Ezzor, onde ao menos dez soldados do regime teriam morrido numa emboscada, segundo ativistas.

Na Turquia, o comandante opositor do chamado Exército Livre da Síria (ELS), coronel Riad al-Asaad, negou qualquer responsabilidade sobre o ataque à rede de TV. Além de culpar dissidentes próximos ao coração do regime, ele também denunciou a presença de guerrilheiros do grupo xiita libanês Hezbollah em cidades como Homs e Talkalah.

- Nós confirmamos o envolvimento deles. Vimos comboios fortemente armados e diversos ônibus de combatentes - afirmou Asaad ao diário libanês "Daily Star".

O cenário corroborou as conclusões do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o conflito que se arrasta há 16 meses. Um relatório elaborado pelo brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, divulgado ontem, acusou com preocupação a proliferação de novos grupos insurgentes, mais organizados e capazes de infligir alguns golpes pontuais ao regime sírio. E, além de violações cometidas tanto pelo governo como por opositores que tentam fazer justiça com as próprias mãos, o documento denunciou, ainda, o aumento da violência sectária

"Antes as vítimas eram selecionadas em função de serem partidárias ou não do regime. Registramos um número crescente de incidentes nos quais as vítimas parecem ter sido alvos de ataques por conta de seu grupo religioso", informou o texto de 20 páginas, resultado do trabalho da comissão independente de investigação liderada por Pinheiro.

Um dos pontos altos do documento - as descobertas sobre o massacre de Houla, há um mês - enfureceu a Síria. Embora o texto não culpe explicitamente ninguém pela morte de 108 pessoas, indica evidências que apontam para participação de forças do regime na matança. O representante sírio no Conselho de Direitos Humanos da ONU, Faisal al-Hamwi, deixou a sala em protesto durante a apresentação do documento. E ameaçou com a suspensão de qualquer cooperação síria com as Nações Unidas.

- Não vamos participar nesta sessão de politização flagrante. Como pode ser que alguns finjam estar preocupados com o povo sírio e, ao mesmo tempo, armem terroristas e conspirem contra os sírios? - indagou.

Apesar das ameaças, o enviado especial da ONU e da Liga Árabe ao país, Kofi Annan, convocou para sábado uma reunião de emergência dos membros permanentes do Conselho de Segurança, além de União Europeia, Turquia, Iraque, Kuwait e Qatar, para discutir a crise síria. A ausência das potências regionais Arábia Saudita e Irã - um grande financiador do regime sírio - nas conversas acentuou, nos bastidores da diplomacia, o clima de ceticismo. O porta-voz de Annan, Martin Nesirky, no entanto, tentou contemporizar.

- Ele vai mobilizar o Irã e também assegurar seu envolvimento contínuo - assegurou.