Título: Memórias do outro lado do front
Autor: Werneck, Antônio
Fonte: O Globo, 20/07/2012, Rio, p. 12

Cinco ex-traficantes dos complexos do Alemão e da Penha relatam os momentos antes da pacificação

O Brasil inteiro parou para assistir à retomada dos complexos da Penha e do Alemão pelas forças de segurança, em novembro de 2010, quando centenas de traficantes foram filmados fugindo pela Serra da Misericórdia. As cenas poderiam ter sido sangrentas se não fosse a intervenção de parentes dos bandidos. Isso é o que revelam, quase dois anos depois da ocupação daquele território pelo Estado, cinco homens que engrossavam as fileiras do poder paralelo naquelas favelas. Agora trabalhando no AfroReggae, eles contam que, às vésperas da ocupação, o clima entre os traficantes era de muita tensão, medo e apreensão. E que só não houve um enfrentamento com os policiais e os militares por causa dos apelos de suas famílias.

- Foram momentos dramáticos, de decisões rápidas e de escolha: estávamos cercados, mas armados com fuzis de guerra, lança-granadas e rojões. Tínhamos munição suficiente para segurar um longo tiroteio. Mas aí vieram nossos parentes, em procissão: "Vocês vão morrer. Tem muita gente lá fora, Exército, polícia, federais", diziam. Filhos e mulheres implorando. Resolvemos não encarar e fugir - contou Jucelino Vitorino da Silva, de 25 anos, que revelou os bastidores do tráfico durante a ocupação ao lado de Diego Raimundo da Silva, o Mister M; Carlos Alberto Gomes de Oliveira Filho, o Perninha; Marcos Coutinho dos Santos, o Marcos Sabão; e Márcio Nascimento Clapp, o Marcinho Clapp.

Os cinco - que vão contar a experiência de viver no tráfico e depois mudar de lado no projeto "Comandos", do Grupo Cultural AfroReggae, que começa no próximo dia 24, no núcleo do Morro do Cantagalo, em Ipanema - disseram que a tomada dos complexos começou três dias antes de 25 de novembro, data em que a Vila Cruzeiro foi invadida pelas forças de segurança.

- Na terça-feira, os policiais do Bope (Batalhão de Operações Especiais) começaram o ataque. Passamos três dias trocando tiros. Eles não conseguiam entrar. Somente na quinta-feira, com o apoio dos blindados da Marinha, a entrada foi possível - relembra Márcio Clapp, de 41 anos, o mais velho do grupo.

Ex-soldado do Batalhão de Infantaria Paraquedista do Exército, Sabão calcula que 300 traficantes fortemente armados atuavam nos complexos. Um número que podia dobrar se levadas em conta as pessoas que viviam no entorno do tráfico:

- Havia viciados, olheiros e gente que não pegava em armas, mas vivia às custas do tráfico. Por exemplo, naquele grupo que aparece fugindo no alto da Serra da Misericórdia, correndo da Vila Cruzeiro para o Alemão, nem todos eram do tráfico. Tinha pessoas que viviam ali, em torno da gente.

Ex-bandidos estão agora no AfroReggae

Hoje, os cinco, que dizem não responder a qualquer inquérito ou processo, abandonaram os fuzis e estão trabalhando no AfroReggae. Diego, Jucelino e Marcos Coutinho contam que são funcionários de uma produtora que trabalha com programas de televisão. Clapp e Carlos Alberto abraçaram outra missão: são responsáveis por convencer empresários a dar oportunidades a ex-bandidos.

- De alguma forma, nós fomos multiplicadores da violência. Hoje, estamos fazendo o contrário: multiplicando a mensagem do bem, de que o crime não compensa mesmo - garantiu Jucelino, o mais falante do grupo. - Cursei e conclui o ensino fundamental, mas sempre gostei de ler. Sou autodidata - disse ele, que começou no tráfico quando deixou o Exército em 2006. - Nasci no Complexo do Alemão. Naquelas condições, eu não sabia diferenciar nada: o que era o bem ou o mal. Analisando agora, eu lembro que havia uma harmonia. O tráfico fazia parte da rotina natural.

Segundo o coordenador do AfroReggae, Jose Junior, durante os debates do projeto "Comandos", estarão frente a frente pessoas que fizeram parte do tráfico e policiais da tropa de elite da PM. O encontro se repetirá em comunidades pacificadas, escolas e universidades de todo o Brasil.

- Queremos discutir e debater visões de mundos opostos, mas reunidas agora pela crença na educação e na transformação social, a partir das experiências refletidas em histórias de vida que contribuem para a formação de uma consciência crítica - diz Jose Junior.

O coordenador do Afroreggae observa que o crime vira uma tatuagem para o resto da vida:

- É uma marca que essas pessoas levarão para o resto de suas vidas, mas ninguém precisa ter vergonha. É orgulho terem deixado o crime. Eles são sobreviventes.

Jucelino diz que ser do tráfico é uma ilusão:

- O tráfico tem três momentos. No primeiro, você é atraído pela ilusão de ter arma, dinheiro e mulheres. Depois, como você começa de baixo, tem a ilusão de chegar ao comando, ao poder; e depois, vem a ilusão de querer sair e nem sempre é possível. É muito doloroso.