Título: A herança da ditadura nos quartéis
Autor: Damous, Wadih
Fonte: O Globo, 19/07/2012, Opinião, p. 7

Assim como eu, muitos leitores devem ter ficado estarrecidos ao tomarem conhecimento, na coluna Panorama Político na edição do GLOBO do último dia 12, das músicas cantadas na véspera por soldados do I Batalhão da Polícia do Exército em exercício pelas ruas da Tijuca. "Bate, espanca. Quebra os ossos. Bate até morrer", berravam os soldados, marcando as passadas. O instrutor retrucava: "E a cabeça?". "Arranca a cabeça e joga no mar", gritavam os soldados. Por fim, o instrutor perguntava: "E quem faz isso?" E os soldados respondiam: "É o esquadrão caveira."

Naquele quartel funcionou, na década de 70, o famigerado DOI-Codi, o principal palco de torturas e assassinatos de presos políticos no estado. Pelo visto, sua filosofia permanece em vigor.

E, mais do que o desequilíbrio de um tenente ou sargento instrutor, o episódio revela coisa pior.

Não se procedeu à extirpação das heranças da ditadura, pois que no Brasil não houve uma Justiça de Transição, como em outros países do Cone Sul. Sequer os arquivos dos órgãos militares que participaram da repressão política ou decretos secretos do regime militar são conhecidos - mais de 25 anos depois do fim da ditadura.

Torturadores foram homenageados há pouco tempo em clubes militares. E, recentemente, o paraninfo da turma de jovens oficiais formados na Escola de Agulhas Negras foi o general Médici, responsável pelo período mais duro do regime militar.

Como se vê, a música dos soldados nas ruas da Tijuca não é episódio isolado. Algo está fora dos eixos nas nossas Forças Armadas e na formação de seus oficiais e soldados.

A recém-criada Comissão Nacional da Verdade pode ajudar a mudar esse quadro e lançar luz sobre episódios tenebrosos ocorridos na ditadura. Se fizer isso, estará ajudando a semear na sociedade a rejeição a torturas e assassinatos de cidadãos sob a guarda do Estado, e criando anticorpos para que a barbárie não se repita.

No Brasil de hoje, os militares já não estão no primeiro plano da política, mas, dos bastidores, ainda se reservam o direito da última palavra em questões que lhes digam respeito diretamente, como a formação de quadros nas Forças Armadas. Tudo funciona como se, na democracia em que vivemos, os militares não se imiscuíssem diretamente na política, mas tivessem salvo-conduto para fazer nas Forças Armadas o que bem desejam.

A herança da ditadura e a influência dos militares em terrenos que não deveriam dizer-lhes respeito se fazem notar também em outros lugares do aparelho do Estado - veja-se, por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal, que estendeu os benefícios da Lei da Anistia a torturadores e assassinos de presos.

Tal situação não é aceitável na democracia. As Forças Armadas são uma instituição nacional, devendo servir para defender o país contra agressões externas; e, no plano interno, garantir a ordem democrática e o estado de direito. Daí que a formação de seus integrantes deve prepará-los para essas funções e, também, para algo inseparável delas: o respeito aos direitos humanos.

Mesmo numa guerra, não é aceitável que militares "espanquem o inimigo até que este morra", ou que "cortem sua cabeça e a joguem no mar", como reza a música cantada pelos soldados da PE. Afinal, também os conflitos armados têm seus códigos e regras.

Educar os militares com base em tais concepções significa prepará-los para o desrespeito às convenções que regem as guerras. E - ainda pior - para o desrespeito aos direitos humanos, mesmo em períodos de paz.

Por isso, a formação dos militares deve ser assunto da sociedade como um todo, e não monopólio de viúvas de uma era tenebrosa que os brasileiros não querem mais de volta.

É preciso reformar e adequar as Forças Armadas à democracia.

WADIH DAMOUS é presidente da OAB-Rio.