Título: Democracia racial
Autor: Thomas, Kendall
Fonte: O Globo, 10/08/2012, Opinião, p. 19

Uma das críticas feitas a programas de reserva de vagas a estudantes negros é que políticas desse tipo representariam uma ameaça à democracia racial, pois não levariam em conta o elevado grau de miscigenação da população nacional, em contraste com o birracialismo norte-americano produtor de "tensões [aqui] até agora inexistentes" (O GLOBO, 2/5). Dada a inegável importância do fenômeno da mestiçagem para a cultura nacional, achamos que críticas desse tipo não merecem ser desprezadas. Todavia, no lugar de uma ameaça, acreditamos que ações afirmativas representam um avanço no inacabado projeto brasileiro de democracia racial.

Culturalmente a democracia racial tem sido associada à valorização da complexidade e da ambivalência da figura do mulato. O elogio da mestiçagem, contudo, não é incompatível com o reconhecimento da existência social de identidades raciais. Isto porque alguém pode afirmar-se simultaneamente brasileiro e negro (ou branco ou indígena), pois a identidade nacional não precisa ser formada pela negação do pluralismo étnico.

Na economia, o compromisso com a democracia racial está voltado à superação da desigualdade de posições sociais. É um fato sociologicamente constatável que a cor da pele ainda representa um obstáculo à promoção da igualdade entre os brasileiros. Esse obstáculo pode assumir a forma de discriminação explícita, mas independe dela, pois o que está em questão é garantir que negros, pardos e indígenas participem, em condições de igualdade, de setores da economia e das instituições públicas dos quais são, por fatores estruturais, historicamente alijados. O racismo dá suporte a discursos que justificam a desigualdade, mas a desigualdade racial prescinde desses discursos, do mesmo modo que a constatação de que as mulheres recebem menor remuneração do que os homens prescinde de discussões sobre discriminação intencional de gênero.

Gostaríamos ainda de apontar um terceiro aspecto. O alto grau de miscigenação contribui para a redefinição da desigualdade racial menos em termos biológicos e mais em termos do reconhecimento de que os negros ocupam posições subalternas na sociedade. Tem razão Joel Rufino dos Santos, quando afirma que o negro é antes um lugar social, instituído por diversas coordenadas, dentre as quais a cor da pele, a ancestralidade, a pobreza, a cultura comum e a atribuição da identidade negra pelo outro. Essa perspectiva representa uma importante contribuição para a teoria crítica racial e achamos importante dar-lhe o devido destaque: a raça não é um elemento inscrito na ordem natural das coisas, mas uma posição social definidora de privilégios e subordinações. A autoidentificação é um dos indicadores desse lugar social; a situação de subordinação ou discriminação, porém, independe da identificação com o grupo discriminado por parte de quem a enfrenta. Em termos de políticas públicas, importa mais especificar as coordenadas que colocam o candidato a um programa de ação afirmativa em posição de desigualdade social, reconhecendo os padrões estruturais de inserção subordinada dos negros na sociedade, do que enveredar em discussões sobre quantas e quais identidades raciais devem ser reconhecidas para fins de inclusão nesses programas.

Uma concepção pós-identitária do problema enfatiza que a distribuição desigual dos ônus, riquezas e benefícios sociais entre brancos, indígenas, pardos e negros, ainda que não causada por discriminação racial explícita, é incompatível com o estado democrático de direito. A legitimidade democrática do Estado depende de oportunidades iguais no que se refere à mobilidade social e ao acesso a bens coletivos fundamentais, especialmente o ensino público superior. Como enfatizou a Suprema Corte dos EUA ao julgar constitucionais as ações afirmativas da faculdade de direito do Michigan, "a efetiva participação dos membros de todos os grupos étnicos e raciais na vida civil (...) é essencial para a realização do sonho de uma Nação indivisível". Para nós, portanto, ações afirmativas não são divisionistas; pelo contrário, são um dos instrumentos de que dispõe o Estado para promover uma democracia racial que faça jus ao nome.