Título: A PEC dos vereadores e a Constituição
Autor:
Fonte: Correio Braziliense, 27/09/2009, Opinião, p. 28

Não é possível qualificar senão como manobra política oportunista, marcada com o sinete da imoralidade, a decisão do Congresso de atrelar às câmaras municipais mais 7.343 cargos de vereadores. A emenda constitucional que viabilizou a indecência (PEC n° 336/09) não ficou apenas na criação das cadeiras, já de si iniciativa inconveniente a todos os títulos. Ordenou a posse imediata de igual número de suplentes. Raras vezes Câmara e Senado ocuparam-se em promover, em um só instrumento legislativo, tantas afrontas às convenções morais e violações à Constituição.

A impostura do Congresso foi confeccionada apenas com o tecido da malandragem política, à vista da inexistência de qualquer movimento popular em favor da medida. Salvo ¿ explique-se ¿ as pressões dos próprios beneficiários da prebenda espúria. Os deputados e senadores que deram quorum à aprovação da matéria agiram para aumentar o lastro de apoio nos municípios com o olho nas eleições de 2010. Para tanto, não se pejaram em legar à ordem jurídica verdadeiro queijo suíço, tanto os furos abertos na Carta Política.

Todo o conjunto das disposições aprovadas está, antes do exame de qualquer outra impertinência legal, vulnerado por vício incorrigível de inconstitucionalidade. O art. 16 da Lei Maior sanciona que as regras eleitorais precisam ser aprovadas um ano antes da eleição, advertência que inclui o número de vagas nas Câmaras. Se o objetivo nuclear da PEC fere a Constituição, todos os demais pontos secundários desabam pelo princípio da contaminação. Quando muito, por efeito de interpretação indulgente, poderia o aumento das cadeiras valer para o pleito de 2012.

Observe-se, ainda, que os destinatários do privilégio indecoroso são vereadores suplentes, não suplentes de vereadores, como sucede no caso de suplentes de senadores. Não foram, portanto, eleitos. Logo, a criação das vagas e a posse imediata teriam efeito de eleição indireta, como bem advertiu o ministro (aposentado) do Supremo Tribunal Federal Carlos Veloso, também ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Ora, a Constituição estabelece que a soberania é um dos fundamentos da República (art. 1, inciso I). E o artigo 14 sanciona que ¿a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto (¿)¿. Não há amparo para a via eleitoral indireta.

No aranzel das muitas agressões ao texto constitucional, colhe-se que a eventual aplicação da PEC implicará mudança dos dados pertinentes à formação do cociente eleitoral dos partidos. Em consequência, muitos vereadores eleitos deverão ser afastados para ceder lugar aos que chegam pela decisão obscena do Congresso. A invalidação de mandatos outorgados segundo os mandamentos da lei corresponderia a inadmissível fraude à consciência popular. A esperança é a de que o STF recomponha a ordem política mediante remessa da malsinada PEC ao baú das aventuras insanas.