Título: Hospedagem indesejada
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Fonte: Correio Braziliense, 27/09/2009, Opinião, p. 29

O presidente de Honduras pretendeu realizar consulta popular com o fim de conseguir mais um mandato eleitoral. É o vírus da revolução bolivariana de Hugo Chávez que se alastra pela América Latina. Leva de roldão até o presidente da Colômbia, seu principal alvo de ataques no continente, que agora caminha na mesma trilha do rival. Como a iniciativa da consulta, seguida de muita confusão, não contasse com o respaldo das demais instituições nacionais, foi o presidente afastado do cargo. Preso à noite no palácio presidencial, foi levado de avião para a Cosa Rica. Os agentes do golpe colocaram em seu lugar Roberto Micheletti, presidente do Congresso Nacional e principal cabeça da rebeldia. Antes de se abrigar na embaixada brasileira em Tegucigalpa, Zelaya viajou por várias partes das Américas em busca de socorro.

A intenção de Manuel Zelaya era realizar consulta popular para saber se o presidente da República poderia ou não se reeleger, sem que, para isso, houvesse previsão legal. A Suprema Corte do país, o Ministério Público e o Congresso Nacional já haviam se pronunciado contra o pleito. Em resposta, mas ao arrepio da Constituição, iniciou por sua conta e risco a medida, em franca desobediência às regras legais pré-estabelecidas. Se seus contrários precisavam de um argumento para o golpe, tiverem-no de imediato. Zelaya não é tão santo quanto se imagina. Apesar do estranho procedimento concebido, não poderiam as autoridades apeá-lo do poder da forma que fizeram. Assim como para a realização da consulta era necessário cumprir a Constituição, do mesmo modo, para retirá-lo do poder, só poderiam fazê-lo se também obedecidas as regras constitucionais.

Sobrou finalmente para o Brasil. A embaixada brasileira está sitiada por soldados do exército. Uma centena de pessoas acompanham Zelaya. Todas se acham, ao fim e ao cabo, na fruição da imunidade de que gozam as missões diplomáticas no exterior. É princípio ínsito à extraterritorialidade das leis. Isso quer dizer que a sede da embaixada é, em realidade, extensão do território nacional. Qualquer violação a essa garantia, que é objeto da Convenção de Viena, atenta contra os postulados de direito internacional. O ingresso de qualquer pessoa estranha na sede da missão, e com mais evidência, de policiais ou de outros agentes oficiais, sem a devida permissão, é violência grave que enseja reações da comunidade internacional firmatária da convenção.

É de observar como o governo brasileiro, e nesse contexto essencialmente o Itamaraty, tem tratado o caso Zelaya. Nada do que censurar quanto ao apoio dado pelo Brasil contra o ato de esbulho cometido. O modo como o presidente deposto alcançou a embaixada brasileira em Tegucigalpa é no mínimo estranho. Em primeiro lugar, por que sua preferência exatamente pela sede da missão diplomática do Brasil, entre tantas outras embaixadas, inclusive de países próximos a Honduras? Depois, por que tanto empenho do governo brasileiro em exigir sua volta? Por que a todo instante, e com insistência, o titular do Itamarati se bate pelo seu retorno ao governo? Dá para supor que o assunto do abrigo na embaixada deve ter tido, de uma forma ou de outra, a anuência do governo brasileiro.

Ninguém é tolo para não admitir que a hospedagem na sede da embaixada não tenha merecido, dias antes, tratativas entre Zelaya e o governo brasileiro. A afirmação do ministro das Relações Exteriores em lhe negar a condição de asilo remete à conclusão de que foi para evitar os incômodos que o instituto impõe. É que, como asilado, não poderia Zelaya, escudado sob a proteção do Brasil, fazer da embaixada escritório de tramas para o retorno à chefia do país. Se lá estivesse como asilado, jamais poderia dar as entrevistas e empreender as ações até aqui promovidas. É muito coincidente que tudo isso esteja acontecendo no momento certo em que chefes de Estado se reúnem na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York. É dessa tribuna que Lula tem enfatizado o retorno de Zelaya à presidência, não fosse o que deve ter sido o acerto entre ambos estabelecido.

Aqui neste espaço já escrevi sobre a truculência praticada por época da deposição de Zelaya. Não seria agora que iria contradizer o que anotei. Não suporia jamais que sua presença pudesse acarretar tantos transtornos às autoridades diplomáticas brasileiras. Entre os estorvos causados, não se pode esquecer do corte de água, luz e telefone da sede da embaixada, absurdo que mereceu repúdio internacional pela agressão aos termos da Convenção de Viena. No mais, é ter que conviver numa embaixada de pequenas dimensões, modesta, sem maior conforto, com mais de uma centena de pessoas espremidas entre salas e corredores, e a necessidade que têm de comer, fazer higiene pessoal, ir ao banheiro e tomar banho.

O mandato presidencial de Zelaya vence em janeiro próximo. Faltam pouco menos de quatro meses para o termo final. As Forças Armadas e demais instituições não querem sua volta. Até agora as tentativas promovidas por entidades internacionais com esse fim foram em vão. Valerá a pena a manobra que conta com o endosso do governo do Brasil? Não acredito que o quadro mude. Enquanto isso, hóspedes e diplomatas convivem com a pandemômica e indesejada hospedagem.