Título: Produto do sistema
Autor: Abramo, Claudio Weber
Fonte: Correio Braziliense, 27/09/2009, Opinião, p. 29

Diretor executivo da Transparência Brasil

Cada vez que surge uma vaga num tribunal superior ou no Tribunal de Contas da União ressurgem controvérsias a respeito do tirocínio do presidente da República ao indicar o indivíduo A ou B. No momento, essas controvérsias envolvem duas indicações simultâneas de Lula, a do deputado José Múcio para o TCU e a do advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli, para o Supremo Tribunal Federal.

Múcio faz parte do gabinete do presidente como seu coordenador político e Toffoli, antes de chefiar a AGU, serviu na Casa Civil durante a gestão de José Dirceu. Toffoli chegou ao governo por ter sido, durante anos, advogado do Partido dos Trabalhadores.

A oposição coloca em dúvida a pertinência de ambas as nomeações, embora seja mais vocal quanto à de Toffoli do que à de José Múcio. As objeções contra a indicação de Toffoli são a sua pouca idade, a escassez de credenciais jurídicas e, principalmente, a sua relação partidária.

A indicação presidencial precisa passar pela confirmação do Congresso, mas de forma geral considera-se que, uma vez tendo o presidente indicado a pessoa, a aprovação pelos parlamentares pode ser considerada como favas contadas. Assim tem sido, de fato.

Como a ratificação congressual é dada como garantida, as críticas à indicação dos dois se voltam contra o presidente da República. Deveria ele ter evitado indicar o advogado de seu partido. Não deveria ele valer-se de sua prerrogativa de nomeação para instalar um aliado no TCU. Ora, tais objeções estão sendo dirigidas ao lugar errado.

É exatamente para impor moderação às indicações presidenciais que a Constituição brasileira as condiciona à aprovação do Congresso. Se o presidente nomeia tanto o ex-advogado de seu partido quanto o seu coordenador político, e se essas circunstâncias são vistas como potencialmente prejudiciais à isenção e/ou competência com que os nomeados exercerão suas funções, caberia aos membros do Congresso rechaçar a pretensão presidencial exatamente sob esses argumentos.

O que não se pode é responsabilizar apenas o presidente da República. Se as nomeações em questão se revelarem desastrosas, se Múcio e Toffoli colocarem os interesses do presidente e de seu partido à frente do interesse público quando no exercício dos cargos que assumirão, quem deve ser responsabilizado não é apenas Lula, mas também, e principalmente, o Congresso.

Sim, mas o Congresso só faz o que o presidente quer (não apenas este presidente, mas qualquer presidente). Como o presidente compra o apoio de uma base parlamentar mediante loteamento dos cargos do Executivo e da distribuição de outros favores, é apenas natural que em alguns momentos o Executivo exprima de modo mais explícito a cobrança da entrega da mercadoria adquirida. No caso, a mercadoria é a nomeação dessas duas pessoas.

(Observe-se que coisa idêntica acontece nos estados, com a diferença de que o que acontece nos estados não costuma ser noticiado pela imprensa brasileira, cujos olhos são postos monomaniacamente em Brasília. Todos os dias, nos estados, acontece o mesmo tipo de coisa, e acontece muito pior, independentemente do partido que esteja no poder.)

O episódio Múcio-Toffoli apenas revela uma faceta adicional da disfuncionalidade na qual a instituição parlamentar brasileira se afundou. Como se vende ao Executivo, o parlamento deixa de ter função. Não legisla (pois quem faz isso é o Executivo), não fiscaliza o Executivo, não exerce papel moderador nas indicações presidenciais, espanta os melhores quadros e atrai contingentes cada vez maiores de indivíduos cuja atividade se resume a perseguir seus interesses privados e partidários.

O eleitor exibe seu desagrado em relação a esse estado de coisas ao atribuir descrédito abissal aos partidos e às instituições parlamentares. Em toda eleição, levantamentos de boca de urna mostram que, passados minutos após deixar a cabine de votação, grande parte dos eleitores sequer se lembra em quem votou.

Nessas condições, inexiste o compromisso entre eleito e eleitor que justifica a própria representação eleitoral: no Legislativo, se os eleitos representam alguém, não serão os eleitores. Não é o que acontece com as eleições para o Executivo, nas quais o alheamento do eleitor é muito menos acentuado. O resultado prático é que a repartição de poderes em que a Constituição se baseia resulta inexistente, ou ao menos muito borrada.

Isso significa que o regime político brasileiro tem muito mais características de absolutismo do que de democracia representativa. Num Congresso que se notabiliza pela subalternidade ao Executivo, nada mais normal que o presidente nomeie quem quiser para ocupar a função que quiser.