Título: Universidades ameaçam ignorar notas do exame
Autor: Magalhães, Camilia de
Fonte: Correio Braziliense, 02/10/2009, Brasil, p. 8

Confirmação do vazamento das provas atrasa calendário e cria impasse entre as instituições. Unicamp e UFG admitem não usar mais o teste como parte do vestibular, e UFRJ decide suspender as inscrições

A estudante Fernanda Madeira, que viajaria hoje para Pernambuco: ´´Estava com as passagens de avião compradas e agora vou ter que cancelar tudo´´

Parte das mais de 40 universidades federais inscritas para usar a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no processo de seleção de alunos ameaça deixar de aproveitar as provas devido ao atraso da realização. Marcado para este fim de semana, o exame foi adiado pelo Ministério da Educação após comprovação de que o material impresso teria vazado. Em reportagem publicada ontem, o jornal Estado de S. Paulo afirma ter sido procurado por um homem que queria vender os exemplares por R$ 500 mil. O cancelamento das mais de 4,5 milhões de provas representa um prejuízo que ultrapassa os R$ 30 milhões, somente no que diz respeito às impressões.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, reuniu a imprensa ontem e disse que não acredita em uma onda de desistências das universidades no que diz respeito à adesão ao Enem. ¿Tínhamos uma pequena folga no calendário. Então, é muito cedo para dizer se haverá ou não (desistências). Mas, nos contatos que fizemos com reitores, explicamos que o adiamento dos exames se deu por questões de segurança e todos parecem ter compreendido.¿

Apesar disso, a Universidade Federal de Goiás (UFG) já adiantou que pode deixar de usar o Enem como 40% na nota da primeira fase do vestibular. A decisão será tomada em reunião do conselho da instituição na semana que vem, mas o indicativo é de que as datas do processo seletivo continuem as mesmas, já que o atraso levaria a um efeito cascata no calendário acadêmico de 2010. As inscrições para o vestibular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), marcadas para começar ontem, foram provisoriamente suspensas. A medida será mantida até que a instituição chegue a uma conclusão sobre como proceder com as notas do Enem, que seriam utilizadas como primeira fase do processo seletivo.

Em princípio, as universidades federais e estaduais de São Paulo não devem alterar os cronogramas de provas. Assim ocorrerá com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde a nota do Enem vale 50% da nota final do vestibular da instituição. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que usaria o exame como 20% da nota da primeira etapa, destacou em nota oficial que vai aguardar o novo calendário do MEC. Porém, se o tempo hábil for extrapolado, o exame deixará de ser contabilizado, conforme previsto no edital.

Responsável pelo vestibular da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, ambas com adoção do Enem como 20% da primeira fase, a Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) manterá as datas já programadas desde que os resultados do Enem sejam fornecidos a tempo.

Distrito Federal

A Universidade de Brasília (UnB) não será afetada com o adiamento. A instituição optou por utilizar as notas do Enem somente a partir de 2011. Segundo Luiz Gonzaga Motta, secretário de Comunicação da instituição, a Câmara de Ensino, Pesquisa e Extensão da UnB (Cepe) preferiu dar um prazo maior para discutir e encaminhar o Enem como substituição ou parte do vestibular.

EMPRESA REINCIDENTE Não é a primeira vez que um processo seletivo coordenado pela Consultec, líder do consórcio responsável pelo Enem 2009, é adiado por suspeita de fraude. Em dezembro do ano passado, as provas do vestibular da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) foram canceladas depois de denúncia anônima de que candidatos já tinham conhecimento prévio do contéudo das provas.

Mudança no planejamento Daniel Ferreira/CB/D.A Press Marcela, Vanessa, Vítor e Maurício: decepção generalizada dos alunos

O adiamento das provas do Enem teve resultado imediato na vida de alguns estudantes inscritos no exame: transtorno. A jovem Fernanda Madeira, 21 anos, por exemplo, estava com tudo pronto para viajar hoje para Pernambuco e fazer as provas no fim de semana. ¿Para mim, foi complicado porque estava com as passagens de avião compradas e agora vou ter que cancelar tudo¿, lamenta a jovem pernambucana, que mudou-se para Brasília após fazer a inscrição para o exame em terra natal.

O goiano Rodrigo Propício, 18 anos, também mudou-se para Brasília neste semestre. ¿Meus pais iam sair da fazenda para me buscar e levar para Goiânia. Aí, eu voltaria de ônibus¿, conta o garoto, que teve de mudar os planos. Por outro lado, Rodrigo está satisfeito porque terá mais tempo para se preparar. ¿Vou poder revisar uma coisa ou outra que não tenho certeza.¿

Rendimento

Se mudança de planos é clara, o adiamento das provas traz outro drama não muito explícito: o abalo psicológico. Além disso, há as dúvidas diante da indefinição. As maiores preocupações são quanto a um possível confronto de datas entre o Enem e os vestibulares em todo o país, o atraso na divulgação dos resultados e a manutenção ou não dos calendários das instituições.

Marcela Peres, 18 anos, soube da notícia de adiamento por meio dos colegas. ¿Achei que fosse mentira. Fiquei abalada, já tinha me preparado para fazer as provas no fim de semana e fiquei muito nervosa porque a gente não sabe quando vai sair o resultado, se vai prejudicar os vestibulares, se vai fazer a segunda fase sem ter o resultado da primeira.¿ Ela prestará vestibular para medicina na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), que terá o Enem como fase única.

Para Vitor Jaculi, também de 18 anos, o Enem perde credibilidade com o ocorrido. ¿Receber dois dias antes a notícia de que exame vai ser adiado por causa de furto é constrangedor¿, avalia o estudante. ¿Aquelas universidades que ainda não aderiram ao exame vão pensar duas vezes antes de decidir¿, acredita. Para ele, o prazo de realização das provas até novembro vai prejudicar os jovens. ¿Com certeza o rendimento vai cair.¿

Os professores também ficaram surpresos com a notícia. ¿Foi uma decepção e um transtorno, que leva a questionamentos com relação à transparência do exame¿, observa Angel Prieto, professor de matemática e diretor pedagógico do Colégio Galois. Na avaliação de Prieto, o perigo é que os alunos fiquem desanimados, já que vinham muito concentrados para a prova deste fim de semana.

Uma solução para o problema de datas, sugere o professor de biologia e diretor pedagógico do pré-vestibular Galois, Marcelo Lasneaux, é que o Enem seja aplicado durante a semana para evitar choque com vestibulares, sempre marcados para os fins de semana. ¿Isso não atrapalha o aluno que fez prova fora¿, diz. (CM)

Em todo o país, revolta e dúvidas

Ulisses Campbell e Marcionila Teixeira Ricardo Fernandes/DP/D.A Press Estudantes fazem manifestação em Recife: nariz de palhaço como adereço

São Paulo e Recife ¿ O brasiliense Tomás Vilanova, 18 anos, saiu de Samambaia para fazer a prova do Enem na cidade paulista de Paulínia. Ele resolveu se inscrever longe de casa porque já estava pensando em se mudar para o interior de São Paulo, onde tem parentes. ¿O cancelamento das provas me pegou de surpresa porque sempre imaginamos que o processo é seguro.¿Ontem, ele estava na porta da Escola Estadual Dom Lázaro, na Zona Sul de São Paulo, com outros amigos para tentar entender o que aconteceu.

Outra que também levou um susto quando soube que o MEC havia cancelado a prova foi a estudante Janaína César Santos, 16 anos. Ela ficou estudando a madrugada toda e, quando foi dormir, por volta das 7h da manhã, ligou o rádio enquanto tomava um café. ¿Eu não acreditei no que o radialista dizia. Acessei a internet, fiquei nervosa e não consegui mais dormir¿, relata.

Estudantes de várias escolas da Zona Norte de São Paulo estão se mobilizando para fazer uma passeata no fim de semana para protestar contra a falta de segurança na aplicação do Enem. Eles pedem que o governo contrate outras empresas para que haja lisura no concurso. A Associação de Pais de Alunos de seis escolas de São Paulo vai consultar advogados para discutir medidas cabíveis contra o MEC.

Em Recife, o nariz de palhaço tomou conta dos rostos dos estudantes, ontem à tarde, durante protesto pelo adiamento do Enem, ao longo da Avenida Boa Viagem, na Zona Sul da cidade. Gritando, apitando e munidos com cartazes feitos de última hora, os alunos de colégios particulares da Zona Sul, como o Boa Viagem e o Motivo, manifestaram insatisfação nas ruas, assim que o semáforo fechava.

A ideia era chamar a atenção dos motoristas. Muitos buzinaram em sinal de apoio ao protesto. Quem ficou em casa também protestou, mas usou a internet como meio de expressão. O Enem foi o assunto mais comentado no microblog Twitter e também bastante discutido em comunidades do Orkut e do site de relacionamentos Facebook.

¿Estamos aqui para mostrar nossa indignação, provar que não ficamos de cabeça baixa diante do cancelamento das provas¿, bradou o estudante Rafael Albuquerque, 18 anos, que participava do protesto em Boa Viagem e se prepara para o vestibular de engenharia da Universidade Federal de Pernambuco. ¿A nossa dúvida agora é saber quando vai ser a prova. Acho que tudo isso faz com que os testes percam a credibilidade¿, completou. A estudante Vanessa Oliveira, 16, considerou o vazamento da prova inaceitável. ¿Isso é um absurdo. Mostra que a educação no Brasil não funciona, não é levada a sério¿, criticou. A colega dela, Aline Mendes, 17, disse que o cancelamento do Enem é falta de respeito com os alunos. ¿Primeiro, anunciaram a prova em cima da hora e agora acontece isso. Eles não têm plano B?¿, questionou. Rafael Carvalho, 17, engrossava o coro dos descontentes: ¿Acho que isso mostra que o governo não está preparado para aplicar o Enem¿.