Título: Em busca da liderança
Autor: Godoy, Fernanda
Fonte: O Globo, 27/09/2012, Mundo, p. 33

Egípcio Mursi estreia com críticas aos EUA , em contraste com tom brando de Ahmadinejad

A sessão de ontem da Assembleia Geral da ONU foi palco de uma transição de lideranças no mundo islâmico, com a estreia impactante do novo presidente do Egito, Mohamed Mursi, seguindo-se à despedida do iraniano Mahmoud Ahmadinejad, que fez um discurso mais brando que de costume, em sua oitava e última aparição no plenário das Nações Unidas. Mursi respondeu ao presidente Barack Obama, afirmando que a liberdade de expressão não pode permitir "o incitamento ao ódio" e a islamofobia, colocou a causa palestina como prioridade, atacou Israel, e disse que não descansará enquanto a guerra civil na Síria não acabar.

— É vergonhoso que o mundo livre aceite, não importa com que justificativas, que um membro da comunidade internacional continue a negar os direitos de uma nação que anseia por independência há décadas — disse Mursi, referindo- se ao conflito entre palestinos e israelenses. — É uma desgraça que assentamentos continuem a ser feitos nos territórios desse povo.

Líder da Irmandade Muçulmana, que esteve proscrita durante anos sob o regime ditatorial de Hosni Mubarak, Mursi fez questão de se apresentar como primeiro presidente eleito democraticamente no Egito e destacou que a revolução que o levou ao poder não é uma "primavera", mas o fruto de um longo movimento nacional. Ele declarou seu compromisso com o respeito aos direitos humanos e defendeu a expansão da democracia no mundo árabe, mas se opôs claramente a intervenções militares estrangeiras, mesmo no caso da Síria, onde o confronto entre a oposição e o regime de Bashar al- Assad já causou mais de 25 mil mortes. Mursi se disse preocupado com o banho de sangue na Síria e defendeu o fim de um regime "que mata seu próprio povo dia e noite".

IRANIANO FILOSOFA, MAS PROVOCA VELADAMENTE

Em resposta direta ao presidente americano, que defendera na véspera a liberdade de expressão como valor fundamental, no contexto da circulação de um vídeo com ofensas ao profeta Maomé, Mursi disse que a liberdade de expressão não pode ser usada para incitar o ódio, nem para colocar grupos específicos como alvo de ataques, condenando a islamofobia.

— Insultos ao profeta Maomé são inaceitáveis. Não podemos permitir esse tipo de ata-ques, isso vai contra os princípios fundadores das Nações Unidas — afirmou Mursi, que foi ovacionado.

Para contrabalançar, o presidente egípcio lembrou que todos os países precisam trabalhar juntos para enfrentar o extremismo, e condenou o uso de violência em protestos contra o vídeo ofensivo, referindo-se à onda de ataques a embaixadas americanas. Mursi pregou o desmantelamento de arsenais atômicos, mas disse que todos os países têm direito ao uso pacífico da tecnologia nuclear, em defesa indireta do Irã. Foi bem mais explícito ao atacar Israel por suas ameaças de ataque preventivo a instalações nucleares iranianas.

— O Oriente Médio não tolera mais a recusa de nenhum país a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, especialmente quando vem casada com políticas irresponsáveis e ameaças arbitrárias — disparou.

A delegação de Israel estava ausente ontem, devido à coincidência com o Yom Kippur, o dia do perdão. Hoje, o premier Benjamin Netanyahu e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, travam seu duelo particular.

As delegações dos EUA e do Canadá haviam se ausentado preventivamente, antes da fala de Ahmadinejad. O presidente iraniano surpreendeu, no entanto, com um discurso menos incendiário — que sequer motivou a onda de retiradas de delegações europeias em protesto, como de costume. Ahmadinejad referiu-se ao 11 de Setembro como "trágicos incidentes", mas insistiu numa "investigação independente", voltando a sugerir uma teoria conspiratória.

O presidente iraniano, que deixará o poder no ano que vem, não voltou a vocalizar sua já tradicional contestação ao Holocausto, que tanta polêmica lhe rendeu, mas afirmou que seu país vive "sob a constante ameaça de sionistas não civilizados de recorrer a ações militares".

Ahmadinejad dedicou a maior parte de seu discurso a uma longa reflexão sobre a decadência dos valores morais do Ocidente e a críticas ao materialismo. Ele aproveitou para reprovar as "enormes quantias gastas em eleições", em referência indireta ao processo eleitoral nos EUA, e pegou carona no movimento Ocupem Wall Street ao dizer que "as vozes dos 99% não são ouvidas nos processos decisórios" no país.