Título: Gargalo científico
Autor: Jansen, Roberta
Fonte: O Globo, 04/10/2012, Ciência, p. 40

Avanços em estudos sobre tuberculose ainda não chegaram ao dia a dia dos pacientes

Antiga inimiga do homem, a tuberculose representa ainda hoje um dos maiores desafios para a saúde da Humanidade. Seis mil anos depois de seus primeiros registros e a despeito de eventuais avanços em tratamento, a doença mata 1,4 milhão de pessoas por ano - só perde em letalidade global para a Aids. No Brasil, o combate enfrenta um entrave adicional, como revela estudo publicado na "Plos One": o conhecimento científico gerado sobre a infecção não se traduz em drogas e tratamentos. E o pior é que os remédios usados hoje são muito antigos, com pelo menos 50 anos, e não estão mais dando conta das variedades mais graves da enfermidade.

Levantamento feito por Alexandre Guimarães Vasconcellos, do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), e Carlos Morel, da Fiocruz, revela que, nos últimos 15 anos, a produção de artigos científicos sobre tuberculose no país aumentou nada menos que 12 vezes, bem acima da média global. Levando-se em conta tudo o que foi produzido no mundo sobre a doença, a participação nacional sobre o tema passou de 1% para 5%. A capacidade inovadora do país, no entanto, não acompanhou a produção de conhecimento. Desde 1995, foram feitos somente 18 pedidos de patentes. Desse total, oito se perderam pelo caminho ou foram indeferidos e, dos que restaram, nenhum foi concedido ainda.

- Há uma grande produção de conhecimento, mas ela não está se transformando em tecnologia - resumiu Vasconcellos, pesquisador e professor da academia do INPI e principal autor do estudo. - Há uma etapa ineficiente, um gargalo.

O drama é ainda maior quando se constata que os quatro remédios usados hoje em todo o mundo para tratar a doença têm, no mínimo, meio século. O mais antigo é de 1952 e, o mais novo, de 1963. Com tais medicamentos, o tratamento leva, no mínimo, seis meses (podendo chegar a nove meses), e ele não é simples: são várias pílulas por dia e com efeitos colaterais severos. No Brasil, são cinco mil mortes ao ano.

- O tratamento apresenta muitas dificuldades - explica Morel, que integra o comitê diretor da Aliança Global para o Desenvolvimento de Novas Drogas contra a Tuberculose. - Para começar, as drogas disponíveis atualmente não são muito poderosas. Por isso, o paciente tem que tomar de três a quatro pílulas por dia ao longo de seis meses, há reações adversas fortes, com vômitos. É preciso ter alguém observando de perto o paciente, vendo ele tomar o remédio, ou ele acaba desistindo.

Como a desistência é alta - no Brasil, chega a 8% -, vem sendo registrado o surgimento de variantes resistentes da doença, para as quais poucas ou mesmo nenhuma droga faz efeito. Um dos maiores temores mundiais atuais em termos de saúde pública é com a disseminação da tuberculose totalmente resistente, para a qual não há cura, já registrada na Índia. No Brasil, ainda não houve nenhum caso dessa variante.

O gargalo ocorre em parte porque a indústria farmacêutica nacional é incipiente, e as parcerias com as universidades são raras. De acordo com o estudo, 70% dos pedidos de patente são feitos por universidades ou instituições de pesquisa.

- Isso é preocupante porque universidade não é fábrica, não é ela que vai levar produtos ao mercado - aponta Vasconcellos. - Se a participação da indústria no processo é tão baixa, isso compromete até eventuais parcerias com as universidades. Nosso estudo identifica esses gargalos e aponta um caminho para as políticas públicas.

O maior problema da tuberculose, segundo os especialistas, é que ela afeta basicamente países mais pobres - ou pessoas muito pobres em países ricos. Ela é também uma das principais infecções oportunistas ligadas à Aids.

- Como foi eliminada dos países mais avançados, não há muito interesse, por parte da indústria internacional, em investir em novas drogas - resume Morel. - Por outro lado, é difícil mesmo, do ponto de vista científico.

Por isso, os pesquisadores acreditam que, apesar de a indústria farmacêutica nacional ser ainda incipiente, seria interessante que houvesse uma tentativa de investir em produtos específicos, direcionados à nossa realidade.

- O déficit de importação de insumos médicos hoje é de US$ 11 bilhões por ano, o que equivale a toda a produção agropecuária do Mato Grosso; ou seja, precisamos exportar milhões de toneladas de soja para comprar alguns miligramas de medicamento. Numa era de biotecnologia, a tendência é que esse déficit aumente, se não tivermos um esforço nacional - sustenta Carlos Morel. - E um dos focos devem ser as doenças negligenciadas, que não interessam aos países avançados porque não existem por lá, como a doença de Chagas, por exemplo. Se não cuidarmos disso, ninguém vai cuidar.