Título: A nova China aos 60 anos
Autor: Cruvinel, Tereza
Fonte: Correio Braziliense, 03/10/2009, Opinião, p. 25

Jornalista, é diretora-presidente da Empresa Brasil de Comunicação tereza.cruvinel@gmail.com

Com uma festa grandiosamente proporcional ao momento que vive, a China festejou na quinta-feira, 1º se outubro, os 60 anos da República Popular. Mais que o aniversário da revolução comunista de 1949, o que a China celebra é o triunfo do modelo singular de desenvolvimento que adotou há 30 anos, quando Deng Xiao Ping, rompendo com a ortodoxia de Mao Tse-Tung, abriu a economia preservando o sistema político e começou a dar o ¿grande salto para a frente¿. A tudo isso, chamam ¿socialismo com características chinesas¿. Esse país colossal é hoje um aliado estratégico do Brasil.

Em setembro, juntamente com jornalistas de outros cinco países sul-americanos, passei 12 dias na China a convite do Serviço de Informação do Conselho de Estado. Essas visitas são frequentes e destinadas a retocar a imagem externa da China. Em nosso caso, com ênfase em duas nódoas e uma suspeita. Estão empenhados em desmentir a ideia de que negligenciam os direitos humanos e o meio ambiente e de que planejam ser uma nova superpotência, que restabeleceria um mundo bipolar, como foi o da Guerra Fria.

O êxito econômico é indiscutível. Apesar da crise internacional, a China vai crescer 8,3% este ano e projeta índice de 9,5% para 2010. Foi a locomotiva socialista que, ironicamente, salvou o capitalismo de uma recessão mais profunda. São chineses as maiores reservas cambiais do mundo (US$ 2 trilhões), o maior volume de exportações e importações e, em breve, o posto de segunda maior economia do mundo, ultrapassando o Japão. O colossal mercado de consumo, representado pela maior população do mundo (1,4 bilhão de pessoas), a mão de obra barata e abundante, combinados com estabilidade política e estímulos estatais, fazem da China o abrigo preferencial dos capitais estrangeiros.

Esses números se traduzem, para o visitante, em sinais exteriores da nova riqueza, às vezes de novo-riquismo. Nas grandes cidades, como Pequim, Xangai e Nanjing, destacam-se os arranha-céus futuristas e obras viárias arrojadas, carros de luxo reluzindo nas largas avenidas, as marcas famosas e os jovens ocidentalizados nos modernos shoppings, a oferta febril de todos os fetiches do consumismo: celulares, câmeras fotográficas, filmadoras, computadores, invencionices eletrônicas as mais diversas.

Atrás desse cenário estão os impressionantes investimentos, principalmente em infraestrutura. A China consome um terço da produção mundial de cimento e de perto entende-se para onde ele vai. As construções estão por toda parte. São prédios, fábricas, pontes, portos, hidrelétricas, rodovias, ferrovias, tudo o que garante a dinâmica da economia. Xangai já tem o maior porto do mundo, que movimenta 380 milhões de toneladas anuais. Mas ficou pequeno. Estão fazendo outro, o Deep Harbor, num pequeno arquipélago em águas profundas, a 32km da costa. É ligado à costa por uma rodovia suspensa mar adentro, uma espécie de Rio-Niterói bem maior e mais larga. Mais impressionante, fizeram isso em dois anos.

Apesar da exuberância, há grandes problemas internos a resolver, sobretudo o da desigualdade social. Se nas grandes cidades a renda pode chegar a US$ 10 mil, na China profunda e pobre ainda há pessoas vivendo com um dólar por dia. Ainda há burgos podres, cidades e povoados onde a qualidade de vida é quase medieval. Não tentaram nos ocultar isso. Visitamos uma das províncias mais pobres, Guizhou, no sudoeste, onde as duas Chinas convivem. Há poucos metros de uma larga avenida de comércio esplendoroso há vielas sujas, com pessoas vivendo em ¿cabeças de porcos¿. Prédios novos sobem ao lado de decrépitos conjuntos habitacionais dos anos 50. Há um êxodo rural intenso, que pode levar a problemas urbanos como os nossos. Com a diferença de que o analfabetismo é bem menor e há planejamento.

Muitos camponeses, obrigados a deixar suas terras para dar lugar às grandes obras de infraestrutura, são transferidos pelo governo para apartamentos em conjuntos habitacionais que aqui seriam condomínios de classe média. Vimos minorias étnicas vivendo em povoados pobres e rústicos, mas beneficiadas, diz o governo, por políticas afirmativas, como o direito a ter mais de um filho e a cota de acesso à universidade.

Há um esforço de transição, de um modelo econômico que usa e abusa dos recursos naturais, para outro mais focado em tecnologia e energias alternativas. As poluentes termelétricas a carvão começam a ser trocadas por hidrelétricas e energia eólica.

A visão global e o pulsar da China deixam a certeza de que está ali uma potência do século 21, quando o poder global, segundo analistas, deve se inclinar para o Pacífico. Nosso mais direto interlocutor, o vice-diretor do Serviço de Informação do Conselho de Estado, Xu Yiang, já no primeiro encontro, declarou: ¿Nós nos consideramos um país em desenvolvimento, preocupado com o bem-estar de seu povo, sem qualquer pretensão de se tornar superpotência¿. Ouviríamos isso de muitas outras autoridades.

No governo do presidente Lula, Brasil e China firmaram aliança estratégica. A China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil ¿ é um dos quatro Brics. Empresas brasileiras, a começar da Petrobras, têm grandes investimentos lá. A China é o maior comprador de ferro da Vale. A aliança também já desperta inveja e receio. ¿China e Brasil ¿ duas potências que se acenam¿, escreveu recentemente o analista argentino Rafael Bielsa, em advertência a seu país. Os acenos são reais e continuam. Na quinta-feira, a recepção oferecida pelo embaixador Qiu Ziaoqi, pela passagem dos 60 anos da revolução, lotou os amplos salões da residência diplomática.