Título: Injeção de ânimo
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 13/10/2012, Mundo, p. 26
Sob risco de desintegrar-se, União Europeia recebe prêmio por contribuição à reconciliação
nobel da paz
No momento em que seu destino está em xeque diante da maior crise de sua História e do descontentamento crescente nas ruas, a União Europeia - bloco que reúne 27 países e meio bilhão de pessoas - ganhou ontem o Prêmio Nobel da Paz "por mais de seis décadas de contribuição para o avanço da paz e da reconciliação, da democracia e dos direitos humanos". Foi uma injeção de memória, sobretudo nos jovens europeus desiludidos com o projeto de união, que não percebem que o continente, na desunião, viveu período bem pior: a destruição em duas grandes guerras.
O presidente da comissão do Nobel da Paz e ex-primeiro-ministro norueguês, Thorbjoern Jagland, foi direto na mensagem política:
- Esta é uma mensagem à Europa para que faça todo o possível para garantir que o que foi alcançado até agora siga adiante.
Merkel: "Incentivo e obrigação"
Numa entrevista em Oslo, ele alertou para o aumento de atitudes extremistas e nacionalistas e disse que "existe um perigo real de que a Europa comece a se desintegrar". Cotada para o prêmio há muitos anos, a UE, em pleno turbilhão da crise, desbancou vários favoritos, entre eles o cientista político americano Gene Sharp, além de dissidentes russos e líderes religiosos. Bruxelas, sede da UE, comemorou a reparação ao que muitos classificam de um "esquecimento histórico". O presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, disse que a UE é "a maior pacificadora na História".
- Todos estamos muito orgulhosos de os esforços da UE para manter a paz na Europa terem sido recompensados - disse Rompuy. - A Europa atravessou duas guerras civis no século XX e estabelecemos a paz graças à UE.
O ex-chanceler federal alemão Helmut Kohl, um dos artesãos da criação do euro, também comemorou. Num comunicado, ele disse que o prêmio era um "encorajamento& para continuar no caminho da Europa unida". Já o presidente da Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, José Manuel Durão Barroso, disse que o prêmio era a prova de que a UE era "algo muito precioso".
A chanceler federal alemã, Angela Merkel - que lidera os esforços para minimizar a crise de dívida que ameaça a sobrevivência do euro -, tachou a escolha de "decisão maravilhosa".
- O fato de o comitê do Nobel ter premiado esta ideia (de integração europeia) é um incentivo e uma obrigação, e também para mim de uma forma muito pessoal - disse a chanceler, que foi alvo de protestos na semana passada durante visita à endividada Grécia.
O entusiasmo não foi compartilhado pelo premier britânico, David Cameron, que evitou comentar o assunto. Ele tem sido pressionado pelos eurocéticos do Partido Conservador a adotar um discurso linha-dura com Bruxelas.
O prêmio, ao mesmo tempo em que deu uma injeção de ânimo na imagem desgastada do bloco, acabou expondo as divergências que persistem sobre os rumos do continente unificado. O Nobel da Paz foi criado num país - Noruega - que hoje se revela profundamente anti-União Europeia. A Noruega rejeitou duas vezes, por referendo, as iniciativas para entrar no bloco (em 1972 e 1994), e uma pesquisa recente mostrou que 80% dos noruegueses se opõem à UE.
- Acho um absurdo! - reagiu Heming Olaussen, líder de uma organização que luta contra a adesão norueguesa ao bloco. - Na América Latina e em outros partes do mundo, isto será visto de uma forma muito diferente do que em Bruxelas. A UE é um bloco comercial que contribui para manter muitos países na pobreza.
instituição sem representatividade
O ex-presidente da Polônia Lech Walesa, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1983 por ter sido o símbolo da vitória pacífica contra o regime comunista, se disse "surpreso e decepcionado" com a escolha.
- Claro, a União Europeia tenta mudar a Europa e o mundo de forma pacífica, mas ela é paga para isso - afirmou Walesa, para quem o prêmio deveria ser dado a pessoas que se engajaram pessoalmente na defesa de um ideal.
Os maiores críticos da UE a descrevem como uma instituição sem representatividade democrática. O Parlamento Europeu, notoriamente, tem menos poder. E ontem, em Bruxelas, a pergunta era: afinal, quem vai a Oslo no dia 10 de dezembro para receber a medalha, um diploma e o cheque de ¬ 930 mil em nome da União Europeia? Voltou a circular a máxima do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger: "Para falar com a Europa, para quem eu ligo?".