Título: Após a ocupação, o desabafo é outro
Autor: Costa, Célia; Daflon, Rogério
Fonte: O Globo, 18/10/2012, Rio, p. 17
Agradecidos, moradores de Manguinhos e Jacarezinho denunciam bandidos à polícia.
Depois de décadas de um silêncio imposto pelo tráfico, moradores do Complexo de Manguinhos e do Jacarezinho começam, aos poucos, a soltar a voz por meio de ligações para o Disque-Denúncia (2253-1177). De domingo - primeiro dia da ocupação das favelas - até ontem, foram 748 telefonemas, boa parte para informar a localização de esconderijos de bandidos. Além disso, o serviço tem sido usado para elogiar o trabalho da polícia e do secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Diferentemente do que aconteceu em outras áreas pacificadas, o Disque-Denúncia não recebeu uma ligação sequer para reclamar de abusos cometidos por policiais.
- São falas emocionadas - disse Zeca Borges, coordenador do serviço. - Temos recebido inúmeras denúncias. A impressão que temos é que a população está apoiando em massa os esforços de pacificação. É importante ressaltar que, até agora, não recebemos nenhuma reclamação sobre a atuação da polícia. Não tivemos denúncias de truculência ou agressões, como houve no caso da ocupação do Complexo do Alemão, em 2010.
Borges destacou a mensagem de uma moradora, que agradeceu o trabalho de Beltrame:
- Recebemos de uma mulher, moradora do Jacarezinho há 20 anos, uma denúncia na qual ela aproveitou para agradecer a todos os envolvidos no trabalho de pacificação do Rio. Ela citou o Beltrame e todos os policiais e fuzileiros que agiram no domingo. Desejou ainda "coragem para continuar o belo trabalho que estão fazendo".
Morador: "o ar está mais leve"
Se de um lado o Disque-Denúncia vem servindo como canal de desabafo, nas ruas, sob olhares de vizinhos ou de policiais, quem vive na região ainda pensa duas vezes antes de expressar sua opinião sobre como era o ambiente antes da ocupação. Fotos, só "roubadas", ou seja, sem o morador saber.
- Por enquanto, temos que nos acostumar a essa nova realidade. Não é tempo de falar, apenas de observar - disse uma comerciante do Jacarezinho, sem sequer olhar para o interlocutor.
Mas há quem quebre essa regra e revele como o "ar está mais leve" por lá:
- Sinto agora como se estivesse num condomínio seguro do subúrbio, onde as crianças podem brincar tranquilas, sem bagunça, sem barulho de música alta. Às vezes, fica muito silencioso por aqui. Que seja eterna esta paz - desabafou o aposentado Manoel de Lima, há 30 anos no Jacarezinho.
Sem se esquivar das perguntas, Manoel também faz reivindicações: quer uma área de lazer na comunidade. Depois da limpeza das ruas e da troca de lâmpadas quebradas nos postes, jogou-se luz sobre um problema vivido por centenas de crianças e adolescentes do Jacarezinho, de Manguinhos e as favelas Mandelas I e II: a falta do que fazer. Para a vendedora de churros Lúcia Gomes, de 50 anos, uma vila olímpica seria uma boa alternativa para os jovens.
- Vai ser um ambiente melhor para criar minha filha, sem homens armados o tempo todo, sem riscos de tiroteio. Ela sempre me perguntava o porquê de tanta gente abandonada, os viciados em crack, quando atravessávamos a linha do trem, na entrada da favela, a caminho da escola. Espero que eu não precise mais dar explicações - disse Lúcia, no Jacarezinho, enquanto observava a filha Ana Clara, de 9 anos, brincar na calçada.
Moradores contaram que os atropelamentos na favela também eram frequentes, principalmente depois de bailes funk. Agora, esperam que isso fique de vez no passado.
Em Manguinhos, o alagoano Luiz Figueiredo Rocha, de 81 anos, dono de um bar na Rua Gil Gaffrée, chegou a construir um paredão de concreto, em 2008, para se proteger dos tiros toda vez que a polícia entrava na comunidade. Seu estabelecimento ficava justamente atrás de uma casamata construída pelos traficantes - e destruída pela PM no domingo.
- Agora vou fechar os buracos (no paredão) com reboco, embora nenhuma bala tenha atravessado. Espero não ter que fazer mais isso - disse ele.
Menino monta cavalo da PM
Nesta etapa do processo de pacificação, as crianças parecem se adaptar com mais facilidade à nova realidade. O adolescente Lucas, de 13 anos, não pensou duas vezes quando viu ontem os 18 cavalos do Regimento de Policiamento Montado (RPMont) em frente à UPA de Manguinhos. Pediu a um dos PMs para montar um pouquinho - e conseguiu.
- Nunca tinha andado a cavalo. É muito bom - disse, sendo guiado por um dos policiais.
O tenente Turques, que comandava o patrulhamento, disse que esse contato com as crianças faz parte do trabalho de aproximação com os moradores.