Título: A estabilidade de preços deveria estar na Constituição
Autor: Alves, Cristina; Rodrigues, Luciana
Fonte: O Globo, 20/10/2012, Economia, p. 44

Em 1974, o economista Edmar Bacha cunhou o termo "Belíndia" em um artigo no qual mostrava como o milagre econômico estava levando a uma enorme concentração de renda, fazendo do Brasil um misto de Bélgica com Índia. Mais tarde, em 1985, Bacha recorreu novamente às fábulas para mostrar o Brasil como o país dos contrários ao assinar "O fim da inflação no reino de Lisarb". Após a redemocratização, ele participou da elaboração dos planos Cruzado e Real, foi presidente do IBGE e do BNDES. Em julho deste ano, em artigo no GLOBO, abordou "O discreto erotismo da macroeconomia", mostrando as dificuldades de se alcançar o equilíbrio das posições entre oferta e demanda, entre a dor da verticalidade e o prazer da horizontalidade, explicitando a eterna disputa entre desenvolvimentistas e monetaristas.

No livro, o senhor discute a dificuldade de reduzir os juros reais no Brasil. O Banco Central (BC) indicou, na última ata do Comitê de Política Monetária (Copom), que vai parar de cortar os juros. Começam a surgir críticas de que eles já estariam baixos demais e que a inflação é um risco. Alguns falam que o BC estaria sendo irresponsável. Qual é a sua avaliação?

A minha avaliação é que o Banco Central foi oportunista, no bom sentido da palavra. A conjuntura internacional estava muito deprimida, com repercussões na economia brasileira, então o BC aproveitou a ocasião para usar o instrumento dos juros. Eu não tenho nada a reprovar nesta ação, inclusive porque o BC antecipou muito melhor do que a grande maioria dos economistas a gravidade da situação internacional, principalmente na Europa. A questão é que o Banco Central agora está reduzindo os juros enquanto a taxa de inflação do Brasil está bem acima da meta, isso é o que preocupa. Então, se olhar só o cenário interno, qualquer um diria que o Banco Central está sendo irresponsável. Mas, independentemente das oportunidades que o mundo ofereça, a questão é como elaborar uma política de médio prazo para, simultaneamente, baixar os juros e baixar a inflação.

Uma das propostas que o senhor apresenta no livro é incluir na Constituição o objetivo de manter a inflação baixa. Como seria isso?

Na Constituição, há vários itens que preveem a manutenção do poder de compra, do salário mínimo, das pensões, dos salários dos funcionários públicos. Os juízes, inclusive no Supremo, quando legislam sobre o seu próprio salário, citam que não estão aumentando o salário, estão apenas repondo a inflação, como a Constituição prevê. Isso é perigoso. Não é perigoso agora, quando a inflação está relativamente baixa, mas estabelece um precedente. Já que os juízes podem, os aposentados podem, o salário mínimo pode, então pode-se usar o princípio da isonomia, que está na Constituição também, e garantir reajuste salarial independentemente de negociação. A minha proposta é incluir na Constituição que o alcance da estabilidade de preços é um objetivo básico da organização econômica do país. Com a estabilidade de preços na Constituição, é possível introduzir uma meta de inflação de longo prazo, de 3% ao ano, para que haja convergência dos reajustes, não pela inflação passada, mas por esses 3%.

O senhor afirma no novo livro que um problema da economia brasileira é o excesso de indexação. Como resolver isso?

O Banco Central hoje só atua sobre 70% (dos preços), porque 30% estão indexados pela inflação passada. Então, sobre esses 70%, o BC tem que atuar muito mais fortemente. Outro problema mais complicado do que os preços administrados é o crédito direcionado. Ao mexer com a Selic, o BC não mexe com as taxas dos créditos subsidiados, que são 30% do total (de crédito). Quando o BC aperta o crédito, o único crédito que ele aperta é o crédito livre, então o Banco Central precisa apertar muito mais do que seria necessário caso a Selic valesse para total de crédito da economia.

Recentemente, temos visto o governo usando os bancos públicos para reduzir o "spread" bancário e diminuir os juros na ponta final ao consumidor. Isso também é um complicador para a política de juros do Banco Central?

Essa iniciativa tem um objetivo estrutural, que é aumentar o grau de competitividade do sistema bancário. Eu sou totalmente a favor a, e em alguma medida, usar os bancos públicos para liderarem esse processo, desde que seja em termos controlados, sem ter que eventualmente recapitalizar os bancos públicos se eles tiverem indo além da linha. Acho inclusive que poderíamos liberar o acesso a empréstimos no exterior, para ter mais concorrência.

O senhor diz que, na conquista da estabilidade, o país acaba testando o tempo todo os lobbies das elites. Como senhor vê esse lobby hoje?

Eu acho que, neste país, existe uma enorme resistência à palavra abertura. Nós somos o país mais fechado do mundo. É patético você olhar tanta reclamação contra importação e constatar que ainda hoje, mesmo com as importações tendo aumentado, a sua participação no PIB é a menor do mundo. Temos algo muito peculiar no Brasil, que é essa enorme abertura para investimento estrangeiro da qual não resulta em exportação. Fico abismado quando vejo a nossa presidente dizer "vamos proteger o nosso mercado", e quem está explorando o nosso mercado são as multinacionais, que estão aqui tendo lucros extraordinários. Estamos protegendo as multinacionais para explorarem os consumidores brasileiros.

O livro cita o exemplo da Noruega e da Austrália como países que se saíram bem com uma economia baseada em recursos naturais. Esse modelo é possível para o Brasil, um país com quase 200 milhões de habitantes?

Os Estados Unidos são grandes e, até hoje, 20% do que exportam são produtos naturais. Evidentemente, por serem um país grande, os EUA geraram uma diversificação. Não acho que o Brasil vá virar um país exclusivamente exportador de produtos primários. Não existe nada errado em exportar produto primário. Mesmo porque quem exporta nossos produtos primários são a Petrobras, a Vale, a Gerdau, a Friboi. O que essas empresas não têm de modernas se comparadas a nossos produtores de sapatos e roupas? O que temos é um conjunto agro-minero-industrial-exportador integrado.

Há quase 40 anos, o senhor cunhou o termo Belíndia e agora temo o Belíndia 2.0. Nesse meio tempo, o país estabilizou a inflação, cresceu e distribuiu renda...

Quem melhor definiu a Belíndia 2.0 foi o Marcelo Neri (novo presidente do Ipea), lembrando que continuamos sendo uma Belíndia, só que agora os mais pobres têm o crescimento indiano e os mais ricos, o crescimento belga (numa referência ao fato de a Bélgica estar crescendo pouco hoje, e a Índia crescendo mais, ao contrário do que ocorria na década de 1970, quando o termo Belíndia foi cunhado). É um grande alívio saber que finalmente paramos de concentrar e começamos a desconcentrar renda. Mas o coeficiente de Gini de 2010 (indicador que mede a desigualdade de renda) está no mesmo nível que estava em 1960, por enquanto só conseguimos voltar ao ponto de partida para onde a ditadura nos levou.

A redução da desigualdade é uma conquista que veio para ficar? O que ficou para trás?

A alta inflação ficou para trás, a ditadura ficou para trás. A distribuição de renda perversa está ficando para trás, mas ainda temos dez pontos de Gini para chegar aonde os Estados Unidos estão. Mas as necessidades também são muito prementes. Como temos só 50% da população com saneamento básico? Saúde pública ainda é uma vergonha, a educação não ensina. A violência continua sendo uma das mais altas do mundo. Somos o sexto país em homicídios. São problemas que não deveriam pertencer a um país de classe média. O Brasil está bem ou mal? Se olha para trás, está bem. Se olhar para os lados, também. Mas, se olhar para o futuro, ainda restam muitas dúvidas. Estamos indo para a normalização, no caminho do meio.