Título: A irresponsabilidade dos Bancos Centrais
Autor: Figer, Silvio
Fonte: O Globo, 29/10/2012, Opinião, p. 21

Sempre que se fala em irresponsabilidade fiscal a primeira associação que fazemos é com governo. Aí está o vilão. Os BCs são ligeiros em apontar as dificuldades, senão a impossibilidade, de defenderem a moeda na presença de déficits públicos, gerados por governos irresponsáveis. A atual situação de descalabro fiscal dos países do Sul da Europa, materializada na inadimplência soberana, seria a prova cabal do que afirmam. No Brasil, é dito, não fora o nosso indomável déficit fiscal nominal, a meta para a inflação, e a Selic já estariam em níveis alemães - ou quase. Na ausência de déficits públicos os BCs nos asseguram do sucesso da política monetária. Ora, trata-se de razoamento virado de cabeça para baixo, uma vez que são os BCs que alimentam os déficits públicos. Senão, vejamos.

Por surpreendente que possa parecer, a realidade é que déficits fiscais são recursos legítimos de política econômica, e seu efeito inflacionário é literalmente zero. É falsa a afirmação de que governos fiscalmente irresponsáveis são aqueles que gastam mais do que arrecadam, uma vez que isto é contabilmente - ou fisicamente - impossível. Se gastou é porque arrecadou. O que se omite é que governos dispõem de duas fontes de arrecadação: tributos e emissão de dívida pública. E nenhuma destas fontes gera inflação, uma vez que representam simples transferências de moeda dos contribuintes (impostos) e dos investidores (dívida pública) para o Tesouro.

A esta altura já posso imaginar o leitor indagando: então como é possível que processos inflacionários sejam recorrentes exatamente nas economias em que o déficit público é elevado? Resposta: porque os BCs utilizam a dívida pública para fazer política monetária, obrigando-se a dar liquidez incondicional a estes papéis. Em um mercado inundado de dívida pública é fatal que, em algum momento, o BC crie moeda além do necessário, comprando estes títulos em excesso, a fim de manipular as taxas de juros primárias dentro dos limites artificiais decretados pelos Copoms do mundo afora. Ou seja, o que cria inflação não é o déficit, mas sim a utilização da dívida pública, gerada pelo déficit, como instrumento de política monetária dos BCs - o que é um enunciado inteiramente diferente.

Para melhor entendimento, imaginemos que a dívida pública ficasse restrita ao mercado de crédito, com os BCs utilizando outros ativos para criar moeda (dívida privada, títulos de crédito privados, ouro, prata, diamantes etc.). O que ocorreria é que, naqueles países de elevados e permanentes déficits fiscais, o volume crescente da dívida pública faria com que as taxas de juros demandadas pelos investidores, no mercado livre da intervenção do BC, se tornassem igualmente crescentes, até o ponto em que mais dívida tornaria o seu serviço inviável. Neste ponto, sem acalorados debates parlamentares, ou convulsões políticas - com a sociedade e grevistas alertas pela transparência do risco -, o déficit público cessaria.

Em outras palavras, os BCs são os responsáveis pela irresponsabilidade fiscal dos governos, na qualidade de seus financiadores de primeira instância. E onde, ao contrário, governos são fiscalmente responsáveis, simplesmente não há necessidade de BCs. Bastaria uma Autoridade Monetária pura. Mas isto já é outra conversa.