Título: Crack a poucos metros de abrigo
Autor: Ramalho, Sérgio
Fonte: O Globo, 31/10/2012, Rio, p. 21

Destino da maior parte dos dependentes de crack recolhidos nas operações da Secretaria municipal de Assistência Social, a Unidade de Reinserção Rio Acolhedor, com capacidade para 422 pessoas, fica num dos acessos à Favela de Antares, em Paciência. Agachado na calçada de terra batida, um homem fuma crack num copo plástico improvisado como cachimbo. A poucos metros dele, outro cheira cocaína enquanto caminha pela rua. O cenário lembra uma cracolândia, com gente maltrapilha, lixo e embalagens de drogas descartadas pelo chão, mas os flagrantes foram feitos à frente ao abrigo da prefeitura.

A unidade tem o portão de entrada instalado a poucos metros de uma barricada erguida com entulho por traficantes para dificultar ações da polícia. É nesse ambiente que os usuários de crack recolhidos recebem tratamento, caso tenham interesse. A maioria, no entanto, volta para as ruas. Segundo a secretaria, o percentual chega a 90%. Com a proximidade da boca de fumo, muitos se drogam ali mesmo em frente à unidade que deveria servir como centro de reinserção social.

O GLOBO acompanhou a rotina em torno da unidade, ouviu relatos de moradores, funcionários (que só aceitaram falar sob anonimato) e dependentes. Dois viciados disseram morar no abrigo, onde encontram comida e roupa, e sair constantemente à rua para consumir drogas, voltando depois. Um dos usuários flagrados cheirando cocaína vestia uma bermuda com a logomarca da prefeitura. Na manhã de quarta-feira passada, ele chegou a se oferecer para buscar drogas para os repórteres, que conversavam com outro usuário na calçada do abrigo. Em troca, pediu dinheiro para comprar algumas "pedras" (crack). Sabia de cor os preços das drogas vendidas a poucos metros de distância e ainda sugeriu a cocaína, afirmando estar "boa".

Na manhã do dia seguinte, lá estava ele no mesmo local, dessa vez consumindo a droga que tentara vender. Logo depois, tentou retornar ao abrigo, mas foi abordado na portaria por um funcionário. Segundo a Secretaria de Assistência Social, os servidores são orientados a repreender os dependentes flagrados usando drogas do lado de fora do abrigo e, em seguida, a encaminhá-los a assistentes sociais e psicólogos da unidade.

Moradores se sentem inseguros

A presença dos usuários em torno do abrigo só fez aumentar a sensação de insegurança entre os moradores da área, que também são obrigados a conviver com traficantes armados. Poucos aceitam falar abertamente sobre o problema. Foi o caso da moradora Cleide Ribeiro, de 37 anos. Há dois anos, ela se mudou para o bairro, mas agora já faz planos de alugar um apartamento fora da região.

- Não tenho segurança para criar meus filhos aqui. Todas as manhãs, quando saio para trabalhar, fico preocupada com eles, que são adolescentes e não aceitam ficar em casa enquanto eu e meu marido trabalhamos - disse.

As imagens de consumo de drogas em frente do abrigo municipal expõem a complexidade do problema dos adultos dependentes. Para Maria Thereza Aquino, professora de psiquiatria da Uerj, que também atua como consultora da Secretaria municipal de Assistência Social, é preciso multiplicar o número de pontos de atendimento aos dependentes:

- Se há 20 cracolândias no Rio, precisamos ter o dobro de pontos de atendimento. Não estamos lidando apenas com a dependência, mas com um quadro complexo. O usuário vive na rua, sem família, sem trabalho, sem comida e, sobretudo, sem perspectiva de vida. Por isso, é tão importante oferecer a eles atendimento especializado, comida e uma alternativa ao vício.

órgão nega uso de drogas em abrigo

Apesar de dependentes ouvidos pelo GLOBO afirmarem que usam drogas também no interior da Unidade de Reinserção Social, a Secretaria de Assistência Social negou que qualquer caso desse tipo tenha sido registrado. No local, segundo nota do órgão, os usuários de drogas recebem atendimento social, por meio de assistentes sociais e psicólogos, além de serem avaliados e orientados para tratamento da dependência química em Centros de Atenção Psicossocial, da Secretaria municipal de Saúde. O espaço, inaugurado em 2011, oferece ainda alfabetização para jovens e adultos, capacitação profissional e esportes. Os abrigados são incentivados a fazer os cursos oferecidos, que incluem aulas de iniciação à informática e oficinas na área da construção civil.

O prédio tem ambulatório, cozinha, refeitório, sala de TV, de atendimento social e área administrativa. Suas instalações foram adaptadas para portadores de necessidades especiais. A Secretaria de Assistência Social negou haver déficit de funcionários por causa da insegurança na região. De acordo com a nota, a equipe do Rio Acolhedor é composta por 203 profissionais. Além de assistentes sociais e psicólogos, o quadro de pessoal é formado por educadores, pedagogos, fonoaudiólogos, professores de educação física, enfermeira e nutricionista.