Título: Sem esquecer o Planalto, tucano luta para recuperar cargo que abandonou
Autor: Carvalho, Cleide
Fonte: O Globo, 28/10/2012, País, p. 19

Ex-prefeito e ex-governador, Serra encara segunda eleição contra petista de primeira viagem

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Em casa. Serra com a filha Verônica e o neto Antonio: vindo da Mooca, tucano até hoje vai à região para visitar as tias que sofreram quando o sobrinho teve que viver exilado no Chile

Infância. Ex-aluno do colégio Dom Bosco, Serra, estudioso, era cobrado por presença em missas

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ARQUIVO PESSOAL

SÃO PAULO "O San Tiago faz sua estrada de Damasco, mas ainda não percorreu a estrada inteira", disse José Serra, ainda jovem, na sala do último andar do prédio do Banco do Brasil, na Avenida São João. No local, funcionava o escritório do Ministério da Fazenda em São Paulo. No conturbado período que antecedeu o golpe de 1964, a observação contundente feita pelo então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) deixou boquiaberto o preposto do então ministro San Tiago Dantas, que o mandara com a missão de tentar uma aproximação com o líder estudantil da entidade, que ganhara status de partido político. Ao se referir à conversão de Paulo ao cristianismo, Serra usou o passado do ministro, que havia sido próximo a integralistas e ex-advogado de multinacionais, para questionar suas ações no governo de João Goulart.

- Ali eu vi quem era José Serra. Ou o interrompia pelo atrevimento ou aceitava e continuava a conversa - diz o jurista José Gregori, que continuaria o diálogo e, nos anos seguintes, ouviria muito falar do estudante brasileiro que, exilado no Chile, estudava Ciências Econômicas e começava a ser reconhecido como profissional talentoso, assessor de economistas de renome e de órgãos internacionais.

O jovem Serra mostrou a que veio logo no início do mandato na UNE. Mandou pintar e limpar a sede e colocou para correr os "estudantes desocupados" que costumavam dormir por lá. "Isso aqui não é terra sem dono. É sede de uma entidade estudantil!", esbravejou. Dono de uma argumentação convincente, ganhou importância na vida política do país. Estudioso, preparou-se. No Chile, onde formava pilhas de jornais brasileiros enviados pela família para lê-los em ordem cronológica, sempre atrasados, estudou e lecionou. Depois foi obrigado a fugir mais uma vez, para os Estados Unidos. Era o golpe do general Augusto Pinochet.

Serra, hoje com 70 anos, não é só bem preparado. Acredita que está bem preparado. Para ser prefeito, governador, presidente. Na carreira política, almejar ser presidente é natural. Na de Serra, há quem considere que o desejo se transformou quase numa obsessão. Outros, que ele segue a ordem natural da carreira.

- É um desejo legítimo. É um quadro qualificado, bem formado. Ele tinha esse projeto e correu atrás - diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, amigo dos tempos da Universidade de Campinas (Unicamp).

Serra não nasceu em berço de ouro, mas sua trajetória o tirou cedo da Mooca, bairro operário de imigrantes italianos. Nas campanhas, o fato de ter nascido ali é sempre usado para relembrar sua origem humilde, numa espécie de aproximação com os eleitores mais pobres. Mas é fato que o candidato que vai às ruas fica visivelmente desconfortável no corpo a corpo eleitoral.

- Pode reparar: a turma do Serra é sempre bem arrumadinha. Não é como a gente. É só olhar que se vê a diferença - aponta uma senhora de quase 60 anos que, num domingo de campanha, se apertava na Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, para participar do apoio das mulheres do PTB à candidatura tucana.

Na rua, as aproximações mais constantes são com as crianças. Beija, fala e tira fotos - um clichê na vida política. Amigos dizem que ele de fato se preocupa com elas e que, desde muito jovem, gostava de se aproximar. Quando via uma, dizia: "Olha que bonitinha".

Na Mooca, onde aprendeu a torcer pelo Palmeiras, jogava bola no pátio do colégio Dom Bosco sob o olhar do padre Benedito, que lhe cobrava presença nas missas. Dificilmente, porém, estava entre os últimos a voltar para casa. Estudioso, ganhou apelido de "Cabeção".

- Ele ia embora antes. Dizia: "Tenho que estudar" - conta o advogado Dino Fiore Capo, uma das companhias na Villa da Mooca, bairro onde viveram os avós, pais e tias de Serra.

Filho único, deixou o silêncio nas casas da Villa quando, perseguido pelos militares, teve que sair do Brasil. A mãe evitava falar no assunto e foi algumas vezes ao Chile para vê-lo. As tias não escondiam seu choro. Dona Serafina, a mãe, morreu em 2007, e Serra ainda visita as tias com frequência.

- Ele só tem cara de bravo. Com a mãe e as tias, era e é muito carinhoso - diz Lúcia Rosana Savini, cuja mãe fazia um fusilli bem fininho, que Serra encomendava até mesmo quando estava em Brasília.

Serra não é de exageros à mesa. Tem estômago sensível e hábitos regrados. Gosta de ir com a família a cantinas. Na Castelões, no Brás, pizzaria eleita por Ulysses Guimarães e Fernando Henrique Cardoso, mais uma pista da personalidade. Apesar de passar por lá quase todo mês, até hoje não tirou foto para a galeria de frequentadores.

Descrito como "pé de valsa", dança até samba, mas não escapa de ser visto como sério desde os tempos do Chile, quando desenvolveu o hábito de trabalhar na madrugada e dormir pela manhã. Às 6h, diga-se. Serra ligava para alunos às 4h30m: "Não estou te acordando, não é?". Perfeccionista, distribuía roteiro de estudos, bibliografia e perguntas que deveriam ser respondidas. Tudo detalhadíssimo. É um homem exigente: não faz concessões à burrice, à ignorância. Cobra resultados e cobra duro, sem elevar a voz. Para discordar dele tem que estar muito bem preparado. Argumentar e provar a equação. Convicto de suas posições, é tido como autoritário, mas adora discutir ideias, o que também ajuda a afiar e testar seus próprios argumentos.

Em campanhas, chega a perder as estribeiras. Neste segundo turno, acusou repórteres de introduzirem "pautas petistas" como a do "kit gay". Numa entrevista à CBN, atacou o jornalista Kennedy Alencar: "Eu sei que você tem preferências políticas, mas modere. Você não pode fazer campanha eleitoral aqui". Serra não faz média e não gosta de populismo. Quando não tem apreço pelo interlocutor, não consegue dissimular.

- Transparece quando ele considera que alguém é vigarista. E o sujeito olha e sabe que é visto como vigarista - diz Gregori.

Mas Serra é um político de muitos amigos e não os escolhe por afinidades políticas. É leal. Mesmo os mais antigos têm até hoje seu e-mail e telefone atualizados, sempre. Mas ao lado se contrapõe outro - o da emoção. No tapete verde do Congresso, irrompeu em prantos ao saber do acidente aéreo que, em 1987, matou seu amigo Marcos Freire, então ministro da Reforma Agrária. No fundo, no fundo, é um calabrês.